A adultização é um termo usado para descrever o processo de atribuir características, comportamentos ou responsabilidades de adultos a crianças e adolescentes.
“É tratar crianças como se adultos fossem”, resume a analista de Pesquisa em Políticas Públicas do Instituto Alana Emanuella Halfeld.
O termo ganhou popularidade após a divulgação de um vídeo do influenciador Felipe Bressanim (Felca) denunciando que adolescentes têm a intimidade exposta em reality shows na internet.
A adultização, porém, pode se manifestar de diversas formas, dentro e fora da internet: quando meninas são incentivadas a usar roupas, maquiagens e acessórios de mulheres adultas; quando crianças ou adolescentes assumem tarefas e papéis que não correspondem à idade, como cuidar de irmãos ou trabalhar; ou quando a sociedade cobra maturidade e racionalidade de pessoas que ainda estão em desenvolvimento.
Segundo a professora do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto Marina Rezende Bazon, a adultização acompanha a história da humanidade. “Na Idade Média, após os seis ou sete anos, quando a criança conseguia sobreviver às condições extremas da época, passava a ser tratada como um pequeno adulto, inserida precocemente no trabalho e na vida sexual, sem proteção ou cuidados específicos. Visão que começou a mudar com o Renascimento (século XVI), quando surgiu a ideia de que proteger a infância e a adolescência ajudaria a formar adultos melhores e melhoraria a humanidade também”, afirma Bazon.
Séculos depois, a adultização continua presente. “Por exemplo, temos dispositivos legais de proteção contra o trabalho infantil, mas as denúncias ainda ocorrem. Com a internet, o problema ganhou outra roupagem e passou a merecer ainda mais atenção”, completa Bazon.
Consumidor e objeto de consumo
Bazon alerta que, na internet, crianças e adolescentes podem ser colocados precocemente na condição de consumidores e também de objetos de consumo.
“Como consumidores, eles são expostos a mensagens, propagandas, conteúdos e estímulos que não são saudáveis, pois ainda não têm repertório para filtrar o que é adequado ou inadequado”, explica a psicóloga.
Segundo ela, conteúdos ligados à estética e à aparência podem afetar de forma negativa a formação da identidade. “Isso impacta aspectos emocionais relacionados ao autoconceito, à autoestima e à construção da própria imagem, o que é bastante preocupante”, acrescenta.
Do outro lado, há também o risco de as crianças se tornarem objetos de consumo. “Filmar o cotidiano de crianças para oferecer esse material como produto nas redes sociais, em busca de curtidas e monetização, também configura uma forma de exploração — tanto pelos pais quanto pela própria sociedade que consome esses conteúdos”, observa Bazon.
“Há casos de crianças e adolescentes sendo usados para divulgar jogos de azar análogos ao tigrinho e de influenciadores mirins incentivando outras crianças a rejeitar atividades típicas da infância em prol, por exemplo, de ganhar dinheiro na internet”, exemplifica Halfeld.
Entre as consequências mais visíveis desse fenômeno está a erotização precoce de crianças e adolescentes, alerta Halfeld. “Isso gera engajamento nas plataformas, o que faz com que esse tipo de conteúdo seja facilmente encontrado por predadores sexuais — e, pior, ainda acabe sendo monetizado pelas redes”, adverte.
Ela lembra ainda que postagens aparentemente inofensivas podem gerar riscos. “Há famílias que não objetivam ganhar dinheiro, apenas compartilham fotos e vídeos das crianças em momentos íntimos — como com roupa de banho ou nadando, material que pode acabar consumido por pedófilos.”
ECA Digital
Segundo Halfeld, a adultização nas redes sociais viola o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em diferentes artigos.
“O artigo 17 garante o direito à preservação da imagem, identidade, autonomia, valores, espaços e objetos pessoais da criança e do adolescente. O 18 determina que é dever de todos zelar pela dignidade e proteger crianças e adolescentes de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, destaca.
Bazon explica que o desenvolvimento da infância e da adolescência deve ocorrer em condições protegidas, para que cada indivíduo possa alcançar seu melhor potencial. “Quando pensamos no trabalho infantil, por exemplo, sabemos que colocar uma criança para cortar cana interfere em seu desenvolvimento físico. O mesmo ocorre ao expor crianças ao ambiente digital em situações de adultos, que são inadequadas do ponto de vista biológico, psíquico e social”, afirma Bazon.
Essas discussões motivaram a criação da chamada Lei da Adultização (Lei nº 15.211/25), também conhecida como ECA Digital, que estabelece mais responsabilidades para as plataformas digitais.
“O dever de proteção é de todos — não apenas das famílias, mas também das plataformas digitais —, para garantir que nenhuma criança sofra assédio ou tenha sua imagem divulgada de forma vexatória ou ofensiva”, explica Halfeld. “Pensemos em uma metáfora: se um brinquedo de um parquinho fere uma criança, a administração do espaço é responsabilizada. O mesmo deve valer para o ambiente digital, no qual as plataformas lucram com esses conteúdos”, adiciona.
Principais aspectos da nova lei
- Responsabilidade ampliada das plataformas. “As empresas passam a responder de forma mais rigorosa pela circulação de conteúdos que estimulem assédio, sequestro ou atentem contra a integridade física e psicológica de crianças e adolescentes. A lei exige atuação proativa para prevenir e remover esses materiais”, apresenta Halfeld.
- Acesso a dados para pesquisas. “A cláusula permite o acesso de pesquisadores a dados das plataformas, para investigar riscos e efeitos de direcionamento de conteúdo a crianças e adolescentes”, diferencia Halfeld.
- Verificação etária reforçada. “sites com conteúdo impróprio, como os de pornografia, deverão criar barreiras de acesso mais eficazes, indo além da simples autodeclaração de idade”, afirma Halfeld.
- Design e classificação de conteúdo. “Plataformas deverão adaptar suas interfaces e mecanismos de recomendação de acordo com diferentes faixas etárias”, aponta Halfeld.
- Avaliação anual de impacto para empresas com mais de um milhão de usuários no Brasil. “Relatórios devem identificar riscos à saúde mental e emocional de crianças e adolescentes e as medidas tomadas para mitigá-los”, aponta Halfeld.
- Proibição das “loot boxes”, caixas virtuais em jogos eletrônicos que oferecem recompensas aleatórias mediante pagamento, funcionando de forma semelhante a apostas.
- Supervisão parental. Até os 16 anos, os perfis de menores deverão estar vinculados a um responsável adulto
- Criação de uma autoridade autônoma para a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. “Será a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que terá como responsabilidade fiscalizar o cumprimento da lei, editar regulamentos e aplicar sanções quando necessário”, descreve Halfeld.
- Disponibilizar controles parentais, como limite de tempo de uso, bloqueio de conteúdos inapropriados, restrição ao uso de inteligências artificiais, entre outros.
- Remover conteúdos prejudiciais a crianças de forma proativa, sem necessidade de ordem judicial
- Coletar dados de menores apenas com consentimento explícito dos responsáveis.
Desafios futuros
Bazon explica que a aprovação da lei é apenas o primeiro passo; sua efetividade depende de implementação e monitoramento contínuos. “A lei é promulgada sem diversas condições necessárias para seu cumprimento, o que faz com que seja desqualificada por setores conservadores. Porém, sua efetividade depende do avanço gradual da sociedade”, afirma.
Halfeld lembra que a aplicação da lei enfrenta resistência de interesses contrários e desafios na regulamentação de serviços e produtos digitais. “Será necessário fortalecer instituições de fiscalização com orçamento, pessoal e tecnologia, assim como investir em conscientização”, afirma.
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