A violência obstétrica é aquela praticada por qualquer profissional de saúde – não apenas médicos — contra mulheres em diferentes momentos da gestação, pós-parto ou abortamento. “Ocorre em serviços públicos e privados e vai além da agressão verbal, abrangendo ação ou omissão que cause sofrimento desnecessário e ocorra sem consentimento”, define a integrante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras Melania Amorim. “A autonomia da gestante deve ser respeitada. O médico pode intervir sem obter prévio consentimento da paciente apenas se houver risco real de morte”, pontua a médica.

Como a violência acontece

Manifestações comuns da violência obstétrica são: exame do toque da dilatação sem consentimento; negar anestésico, alimentação ou água; manter a parturiente presa à cama; impedir a presença de doula e acompanhante (proibido pela lei 11.108/2005); usar oxitocina para acelerar a expulsão do bebê; proibir posições alternativas ao trabalho de parto e induzir a cesariana ou outro procedimento sem consentimento.

Procedimentos violentos durante o parto incluem a episiotomia, que é o corte cirúrgico efetuado na região do períneo, entre o anus a vagina.“Pode infeccionar, demorar a cicatrizar, provocar dor na relação sexual e até casos de incontinência urinária e fecal. Prova de que as consequências físicas e psicológicas podem ser eternas”, lamenta Amorim. “Há situações em que o médico dá pontos na episiotomia sem anestesia. Em qual outra situação na medicina se admite algo assim?”, questiona.

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Há também a manobra de Kristeller, na qual o útero é pressionado para acelerar a saída do bebê. Pode provocar deslocamento de placenta, fraturas e aborto, o que levou a seu banimento pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para completar, a falta de privacidade durante o parto, comum no Sistema Único de Saúde (SUS), é outro exemplo de violência obstétrica. “As gestantes permanecerem com acompanhantes umas das outras é constrangedor. Nesse caso, o ambiente é institucionalmente violento e não culpa da equipe”, pontua Amorim.

Racismo obstétrico

Mas por que a violência obstétrica ocorre? “Há um modelo médico misógino, que vê o corpo da mulher como defeituoso e dependente de intervenção médica. A maioria dos procedimentos introduzidos – como jejum ou raspagem de pelos – não possui evidência científica”, diz a obstetra. “Com a medicalização do parto, a mulher perdeu o protagonismo nesse fenômeno que é natural. Há ainda reprodução de estereótipos de gênero, como falta de credibilidade na palavra da gestante e menosprezo por suas queixas e vontades”, ressalta a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) Flávia Nascimento.

A defensora pública vê resistência da federação, municípios e estados em produzir dados. “Isso impede a promoção de políticas públicas para eliminá-la”. E a forma de coletar dados também exige atenção. “Ao perguntar se a mulher se sentiu vítima, haverá um número limitado de respostas. Mas ao questionar sobre jejum, se a barriga foi empurrada etc., os dados crescem”, conta a médica. Mulheres de todas as raças e classes sociais são vulneráveis à violência obstétrica, mas pretas e pardas são as maiores vítimas.

“É o chamado racismo obstétrico. Há menor uso de anestésico e de orientações sobre amamentação para mulheres negras, por exemplo, pelo estereótipo de que suportam dor e têm mais leite”, denuncia Amorim. A publicitária Débora Bastos, de 38 anos, foi vítima de racismo obstétrico. “O médico exigiu que eu tirasse as minhas tranças para entrar no centro cirúrgico, sendo que há procedimento de isolamento do cabelo, algo que já havia feito anteriormente”, conta.

A prevenção à violência obstétrica pode passar pela presença da doula, uma assistente do parto humanizado e que é também testemunha do processo, e pela elaboração de um plano de parto. Esse documento reúne os desejos da gestante e é entregue à equipe médica. “Se descumprido injustificadamente, há repercussão jurídica”, informa Nascimento. Em casos de violações, é possível buscar as corregedorias dos hospitais particulares e do SUS, registrar boletim de ocorrência, acionar o ministério público ou a defensoria pública.

Reforma do sistema

Mesmo mulheres cientes de seus direitos no momento do parto não ficam imunes à violência obstétrica. Bastos teve trechos do seu plano de parto ridicularizados pela equipe médica. Em São Paulo, a atriz Fernanda Perez, de 41 anos, optou por entrar em trabalho de parto em casa, com assistência de doula, e buscar o plantão obstétrico de um hospital particular apenas no momento ideal. “Sabia da indução da cesariana e uso de oxitocinas. Queria garantir um parto natural e humanizado”, justifica

Durante a experiência, foi questionada porque não tinha equipe médica, sentiu resistência à entrada da doula, sofreu toque doloroso, permaneceu sozinha no hospital e foi mandada para casa por duas vezes. “Sozinhos, vimos o aparelho que monitorava os batimentos cardíacos do bebê cessar. Ele havia mexido sem sabermos e ficamos desesperados”, relembra. O medo de uma terceira hostilização no hospital a levou ao parto domiciliar, auxiliado pela doula e parteira.

História semelhante à da bailarina Sofia Gonzáles, de 27 anos. Ela foi pressionada por um médico para internar sem estar com dilatação para o parto natural. “Estava sozinha e sem itens pessoais. O médico dizia coisas como ‘vocês do parto humanizado são egoístas e não pensam no bebê’. Precisei assinar temo de evasão e sabia que seria maltratada ao retornar”, relembra.

Devido ao parto domiciliar – que não é proibido no país — ambas sofreram recusa dos hospitais em realizar os testes básicos de saúde do bebê. “É uma ‘vingança’ do sistema contra a mulher que ousou transgredir suas regras”, opina Amorim. Contra o problema, ela defende reformar as residências médicas e fomentar partos assistidos por enfermeiras obstétricas.

“Os médicos são treinados para temer a fisiologia natural e ver o corpo feminino como uma bomba-relógio. Lidam com alto risco, não com o baixo”, analisa. Outro caminho é via legislativo. “O Brasil ainda não tem legislação sobre o tema, mas algumas leis estaduais que reconhecem o direito ao parto humanizado”, observa Nascimento.

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