A Lei Maria da Penha (11.340/2006) é a principal legislação brasileira de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra mulheres, estabelecendo medidas protetivas de urgência, punições contra agressores e mecanismos de acolhimento às vítimas. Após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro de 2025, ela também passou a ser estendida às relações homoafetivas entre homens. O pedido foi realizado pela Associação Brasileira de Famílias HomoTransAfetivas (Abrafh) e questionava a omissão do Congresso Nacional em aprovar legislação sobre o tema.
“Já existia previsão legal expressa a casais homoafetivos femininos, pois, nesse caso, a vítima é do gênero feminino, independentemente de a agressora também o ser”, explica o coordenador auxiliar do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e de Gênero da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Danilo Martins Ortega.
“Já com relação à ampliação de atendimento às mulheres trans e travestis, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia fixado precedente em 2022”, contextualiza a advogada e presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e Gênero do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Chyntia Barcellos.
“No casso de casais homossexuais masculinos, algumas delegacias já prestavam atendimento, e decisões judiciais foram proferidas reconhecendo a violência doméstica e a vulnerabilidade de um dos companheiros dentro da união”, acrescenta.
“Buscamos no STF esse reconhecimento porque a violência doméstica é um mal silencioso que também assola parte de nossa população. Porém, tivemos muito cuidado em deixar claro que a Lei Maria da Penha não deve ser aplicada a favor de um homem contra uma mulher”, explica o presidente da Abrafh e propositor da ação, Toni Reis.
Justificativa para a ampliação
A extensão da proteção a casais homoafetivos masculinos decorre da lógica de violência baseada em gênero, não em sexo biológico.
“Vivemos em uma sociedade marcada pelo machismo que influencia inclusive as relações homoafetivas. Assim, casais masculinos ou femininos podem reproduzir assimetrias de gênero socialmente construídas”, descreve Ortega.
“Isso porque a socialização dos homens gays pode gerar expressões de gênero diversas, variando do ultramasculino ao afeminado. Porém, a feminilidade em corpos masculinos é socialmente estigmatizada e associada à subalternidade, o que pode gerar dinâmicas assimétricas que reproduzem padrões de dominação, deixando-os suscetíveis à violência doméstica. O ponto central, portanto, não é a identidade, mas a expressão de gênero”, diferencia Ortega.
Como acionar a Lei Maria da Penha sendo homoafetivo?
“A vítima mulher, incluindo trans, pode se dirigir a qualquer delegacia, seja comum ou a da mulher. Homens gays devem ir a uma delegacia comum. Caso o pedido não seja atendido, todos podem procurar o Ministério Público ou a Defensoria Pública”, orienta Ortega.
Reis, porém, lembra que a definição sobre qual delegacia procurar ainda compete aos estados e ao Distrito Federal (DF). “No mundo ideal, todas as delegacias deveriam ser capazes de atender todos os tipos de casos, mas sabemos que as delegacias especializadas ainda são úteis e necessárias no mundo real. Por isso, é importante a contratação de advogado para uma melhor assistência de acordo com a realidade da sua localidade”, orienta Reis.
“Inclusive, alguns gestores públicos já nos pediram recomendações sobre como proceder”, compartilha o presidente da Abrafh.
Diferenças entre os processos
Praticamente todas as medidas protetivas listadas pela lei a casais heterossexuais podem ser aplicadas a casais homoafetivos, incluindo:
- Suspensão da posse ou restrição do porte de arma do agressor;
- Afastamento do lar ou do local de convivência com a vítima;
- Proibição de aproximação da vítima, de seus familiares e de testemunhas, com fixação de distância mínima;
- Proibição de contato com a vítima, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
- Restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores;
- Prestação de alimentos provisionais ou provisórios;
- Comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação;
“Essas medidas são concedidas em um procedimento simplificado e têm caráter cautelar, visando a proteção imediata da vítima. É possível solicitá-las, inclusive, durante processo de divórcio e guarda de filhos”, ressalta Barcellos.
Porém, ainda há diferenças nos processos heterossexuais e homossexuais, como aponta o defensor público.
“Entre casais lésbicos e heterossexuais, não há diferença. Para casais masculinos, ainda há debate jurisprudencial sobre a configuração do crime autônomo de descumprimento das medidas protetivas e a constitucionalidade ou não de decretação de prisão em caso de descumprimento da medida protetiva fixada”, aponta Ortega.
Desafios do presente
Para o defensor público, o principal desafio para a aplicação da lei é que todo o sistema de atendimento procurado pelas vítimas conheça a legislação e a decisão do STF
“No mais, há outros desafios compartilhados por vítimas homo e heterossexuais quanto à fiscalização do cumprimento das medidas aplicadas, além da ausência de apoio do poder público para a obtenção de direitos básicos que permitam à vítima sair da relação abusiva, como o direito habitacional e ao trabalho”, finaliza Ortega.
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Crédito da imagem: T-Immagini – Getty Images