Leonardo Valle 

A pandemia do coronavírus trouxe ao mundo crises econômica, sanitária e, no caso do Brasil, política também. Todos esses fatores são geradores de medo na sociedade. “Isso acontece pelo caráter de imprevisibilidade e contato com o desconhecido”, aponta a filósofa Márcia Tiburi.

Contudo, ela vê na criação de redes de apoio e no suporte da ciência formas de lidar com o obscurantismo e, com isso, diminuir esse sentimento. “A solidariedade entre as pessoas terá feito a diferença quando pudermos analisar com mais clareza o que se passou durante a crise do coronavírus”, pontua.

Em entrevista, ela destaca o aproveitamento do medo pelos sistemas econômicos, líderes de estado e instituições, e formas de transformar essa realidade.    

O medo já está presente na sociedade?

Márcia Tiburi: Ele é um sentimento primitivo. Há teorias que o definem como fato biológico, presente até em plantas. Em termos antropológicos, o conhecemos como um fator presente em todas as culturas. A religião, a arte e a linguagem, de um modo geral, seriam tentativas de transcender a esfera do medo na história humana.

Esse sentimento possuía socialmente algum benefício?

Tiburi: Não se pode dizer que haja vantagem nele, mas, sim, que ele é manipulado por quem compreende o seu funcionamento. No caso, instituições. A religião, por exemplo, administra o medo da morte e do sofrimento e oferece em seu lugar a fé em Deus. Em troca, os fiéis pagam um preço e se livram dessa sensação.

A covid-19, em nível global, trouxe crises econômica, sanitária e, em alguns países, política. Crises geram medo?

Tiburi: Sim, porque traz imprevisibilidade, o desconhecido dentro do habitual. Usualmente, o medo se refere ao que já conhecemos. Podemos temer problemas de saúde, econômicos ou emocionais. Já o medo-pânico surge quando algo sai do nosso controle, quando há o desconhecido, algo que não é interpretável por nós. Mas há uma relação dialética nisso: nada é totalmente conhecido ou desconhecido. No caso das crises trazidas pelo novo coronavírus, não era novidade a necessidade de um Sistema Único de Saúde (SUS) fortalecido para enfrentar epidemias e outras doenças diversas. Além disso, hoje, o medo é do coronavírus, mas sempre haverá o temor da falta de saúde e da morte.

“Solidariedade terá feito a diferença depois dessa dessa crise”, afirma filósofa (crédito: arquivo pessoal)

 

Como os líderes do governo colaboram com essa sensação de medo?

Tiburi: Maquiavel no século XVI e Spinoza no século XVII já falavam da manipulação do medo. O que os políticos fazem é criá-lo e depois administrar a reação das pessoas. Além de tudo, como aparece em Maquiavel, quem não pode ser amado, sempre pode se fazer temido. Isso se tornou uma verdade no Brasil.

A economia tem um papel importante no medo?

Tiburi: O capitalismo usa o medo e a segurança como mercadorias: eles integram uma indústria. É um sistema que pratica terrorismo econômico. Catástrofes são até desejadas, podendo movimentar, por exemplo, o setor farmacêutico. E aquele que bota medo na população irá oferecer o “remédio”. A segurança é utilizada como mercadoria contra esse sentimento de ser morto, assaltado, violentado e invadido. Vende-se a ideia de que estaremos seguros adquirindo uma arma, por exemplo. Ou seja, há um controle do simbólico, do imaginário, que atingirá a vida cotidiana das pessoas e como elas se comportam.

E o excesso de informação compartilhada, principalmente fake news?

Tiburi: Tudo isso faz parte da mesma indústria do psicopoder. Medo, mentira, tristeza e pânico promovidos diariamente.

Como os cidadãos podem lidar com esse medo?

Tiburi: Conhecer o medo é um bom caminho para enfrentá-lo. Nesse sentido, uma cultura de mistificação e de obscurantismo tende a não se livrar dele. A ciência pode se contrapor a isso. Sua importância é histórica e, curiosamente, vivemos hoje o mesmo dilema da idade moderna, enfrentado por Descartes, Galileu, Francis Bacon e, um pouco mais para frente, Isaac Newton – momento em que o obscurantismo surgia do encontro entre Estado e religião. Há algo similar, hoje, visto, por exemplo, com o terraplanismo e outras teorias absurdas. Cientistas, intelectuais e cidadãos pensantes fazem frente a esse obscurantismo.

Interações sociais ajudam a lidar com esse medo?

Tiburi: Claro, pois relações humanas confiáveis tendem a melhorar a vida pessoal. Há a rede de apoio de mulheres contra a violência doméstica; de moradores de ocupações; de grupos que doam mantimentos. Pode ter certeza que a solidariedade entre as pessoas terá feito a diferença quando pudermos analisar com mais clareza o que se passou durante essa crise.

Quais são as outras formas?

Tiburi: Uma revolução social na direção de uma sociedade sem medo. O poder perverso se constrói sobre o temor. Para destruí-lo, é necessário atingir o poder que o manipula. Isso exige formas individuais e coletivas. Pensando de maneira dialética, ninguém está isolado ou vive fora da coletividade. A transformação em nível social também passa pelo indivíduo. Não entendido como individualismo ou narcisismo, mas como alguém encarnado, existente nesse mundo e em que nele atua.

O que precisa ser transformado para uma sociedade sem medo?

Tiburi: Basicamente, nosso sistema de poder é capitalista, machista e racista. É isso que temos que mudar. Como? Muitas políticas; atitudes; autorreflexões; promoção de uma educação que crie sujeitos voltados à cultura, ética e democracia; e reformar as instituições, que estão viciadas e servem ao autoritarismo. É necessário avançar em várias frentes.

Veja mais:
O que podemos aprender com a pandemia do coronavírus?
Coronavírus: psicólogos orientam sobre como reduzir medo e ansiedade durante isolamento
Site reúne materiais de enfrentamento ao coronavírus nas comunidades brasileiras

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