A população negra deve ser a mais atingida pela crise econômica pós-coronavírus. Antes da pandemia, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2018, já apontava a taxa de desemprego mais alta entre trabalhadores negros (14,9%) em relação à média nacional (11,8%). Pessoas autodeclaradas pretas e pardas também eram a maioria entre trabalhadores desocupados (64,2%) ou subutilizados (66,1%).

“A instabilidade foi o catalizador de problemas que já existiam por conta do racismo estrutural”, explica o afroempreendedor e fundador do Movimento Black Money, Alan Soares. “Dizem que o sapo não percebe quando a água da panela esquenta aos poucos. É como se o covid-19 tivesse aumentado o fogo de uma vez só”, compara.

Segundo o empresário, o problema pode ser mitigado com o apoio a negócios de pessoas negras – seja vindo da própria comunidade ou de fora dela.

“A estrutura brasileira é racista e reserva o lugar social dessa população na pobreza, e do homem preto no sistema carcerário ou como um ser que pode ser morto”, contextualiza.

“O princípio do 21é compre de pessoas negras, mas venda para toda a sociedade”, diz Alan Soares (crédito: arquivo pessoal)

“Em contrapartida, somos 56% do corpo social e temos um poder de consumo de 1,7 trilhão no país, segundo pesquisa de 2018 do Instituto Locomotiva e da Feira Preta. Se eu não controlo o direcionamento desse dinheiro, ele passa para as mãos de outros setores e a estrutura social não muda. Nesse sentido, o consumo gera poder”, conclui.

Pegada digital

Soares é idealizador do Movimento Black Money ao lado da empresária Nina Silva. O projeto busca estimular o empreendedorismo da comunidade pela tecnologia. Suas iniciativas abarcam cursos, encontros para trocas de experiência e networking, uma fintech e um marketplace.

“O que víamos é que a pessoa negra tinha um negócio e vendia para amigos. Não possuía site e tinha, no máximo, uma rede social – mesmo nem sempre sendo esse o instrumento mais adequado. Com isso, outros consumidores não sabiam como acessar seu produto e serviço”, descreve Soares.

“O mercado black money parte do princípio de pegada digital. O objetivo é reunir empresários pretos e facilitar que sejam encontrados pelos consumidores”, completa.

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O black money é um conceito idealizado pela dupla Soares e Silva a partir dos movimentos estadunidenses Buy Black (compre de negros) e Thank Black (financie negros). “O princípio para o empreendedor é: compre de pessoas desse corpo social, mas venda para toda a sociedade”, explica. “Para os outros consumidores, basta direcionar seu dinheiro para essas pessoas e realizar um consumo intencional”, acrescenta.

Ao final, o crescimento das empresas pode estimular a contratação de outras pessoas da comunidade e fazer o dinheiro circular entre todos, gerando emprego e riqueza.

“É importante a participação da pessoa branca. Sem ela, o racismo não será extinto”, reforça.

Mercado excludente

O empreendedor negro brasileiro se reconhece como pardo (81%), é do gênero feminino (52%) e tem menos de 40 anos (69%). O perfil foi traçado pelo estudo “Empreendedorismo Negro no Brasil 2019”, realizado pela Preta Hub, JP Morgan e Plano CDE.

Além disso, a pesquisa mostrou que os empreendedores negros têm até o ensino médio (49%), renda familiar de até R$ 5 mil (37%) e reside, principalmente, no Sudeste (40%) ou Nordeste (31%). Contudo, 46% virou autônomo por não conseguir acessar o mercado de trabalho devido ao racismo estrutural, contra 51% que empreendem por vocação.

“Quando a pessoa preta se vê desempregada, precisa arranjar uma nova ocupação rápido e, com isso, não tem tempo para pensar e estruturar uma ideia e um plano de negócio. Nesse sentido, a falta de políticas públicas prejudica o segmento”, explica.

“É diferente de países como Suécia e Israel, onde o seguro desemprego é estendido. No Brasil, uma renda básica universal poderia ajudar”, sugere Soares.

Mulheres em formação do programa Aceleradora de Carreiras (crédito: divulgação)

Líder do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil, Elisabete Scheibmayr vê a falta de crédito como outro desafio. A pesquisa realizada pela Preta Hub apontou que a pessoa negra tem três vezes mais chances de ter o crédito negado.

“Com isso, não possui capital de giro e de investimento. Por outro lado, se colocada na economia nas mesmas condições de todos, essa pessoa conseguirá crescer”, opina ela, que é uma das idealizadoras do programa Aceleradora de Carreiras. O projeto oferece uma formação gratuita para mulheres negras que estão no mercado de trabalho.

Outro ponto levantado pelos profissionais é a formação em administração de negócios. “Se eu tiver o crédito, mas não um plano, não souber administrar um canal de vendas ou saber quem é o meu público, eu posso quebrar”, adverte Soares.

Precarização do trabalho

Scheibmayr e Soares, contudo, lembram que o empreendedorismo negro não deve ser confundido com trabalho precarizado.

“É o caso dos entregadores de aplicativos. Nunca vi um empreendedor com um negócio que não é dele, nem a comida ou a bicicleta, que ele aluga, são. Ele vende a força de trabalho por um preço precário, como um escravo moderno”, lamenta Soares.

“Esse trabalhador é o último da cadeia, todos recebem pelo esforço dele antes”, analisa Scheibmayr.

“Ser empreendedor envolve o desenvolvimento de uma ideia, a criação de um negócio, poder exercer sua criatividade e conseguir acessar conhecimento e informações”, destaca ela.

Soares também acredita que a palavra ganhou um contorno negativo nos últimos tempos. “Muitos acham que o empreendedor é quem possui uma ideia que está testando e ainda não deu certo. Quando ela emplaca, vira ‘empresário’”, brinca.

“Da mesma forma que uma pessoa que faz artesanato geralmente não é reconhecida como parte desse conceito. Há um pensamento enviesado na palavra”, alerta ele.

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