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É possível comprovar a relação entre música e cidadania a partir da experiência da primeira orquestra criada em uma favela no Brasil? Essa foi a pergunta que motivou a pesquisa da professora do Programa de Pós-graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades do Diversitas da Universidade de São Paulo (USP) Sandra Regina Chaves Nunes. Em busca da resposta, ela entrevistou treze integrantes da Orquestra Sinfônica Heliópolis, além de um dos maestros que está desde a fundação do Instituto Baccarelli, organização sem fins lucrativos responsável pelas aulas e manutenção do grupo.

orquestra
Créditos: Divulgação.

“Tinha uma das falas que era assim ‘eu podia pegar num revólver ou no violino. Eu fiz a opção pelo violino’. [A orquestra] é uma forma de tirar [o jovem] de uma condição de vulnerabilidade. E foi efetivamente nas entrevistas que eu pude ouvir o quanto mudou. E não só mudou pra ele, mas muitas vezes mudou pra família dele. É uma abertura de horizontes, passar a sonhar, ter outro estilo de vida, que ele não imaginava pra ele”, afirma.
Apesar de constatar que a arte ainda não é vista como opção de futuro profissional por algumas famílias, Nunes percebe que há também as que mudam o conceito que tinham antes da participação na orquestra.

“Teve uma menina que a mãe ficava felicíssima e que ela conseguia ganhar dinheiro com música – porque no primeiro momento ninguém acredita: ‘como assim, você vai escolher música? Olha a sua realidade, de onde você vem, o seu lugar social’. E aí a mãe ficou impressionada, porque ela fala disso: ‘eu posso viver fazendo o que eu gosto e eu tenho o salário que eu levo pra minha família’”, relata a professora.

Nunes cita, ainda, o relato de um jovem que passou a pensar em estudar filosofia e fazer parte de outras orquestras pelo mundo como possibilidades de futuro. “E ele disse pra mim ‘eu não sonhava antes’. Não é que ele viajou, mas, pela música, ele viu a possibilidade de viajar. Ele viu a possibilidade de ir além. Como todos. O que todos diziam é ‘a gente passou a sonhar que há possibilidade de ser, que a gente pode ir para um outro lugar’”, conta.

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Transcrição do Áudio

Orquestra Sinfônica Heliópolis & Isaac Karabtchevsky (diretor do Instituto Baccarelli) interpretam Heitor Villa-Lobos (1887-1959) – Bachianas Brasileiras No. 4 – Prelúdio (1930-1942). A música fica de fundo

Sandra Nunes:
É interessante a história do Instituto Baccarelli, porque Baccarelli vê na televisão um incêndio que houve e ele quer ajudar de alguma forma. O maestro acredita que poderia fazer a diferença levando ensino de música (musical). Vai e procura uma escola. Ele procura mais de uma vez. A diretora, no primeiro momento, não dá acesso, mas decide dar um espaço pra ele.
Ele começa a ensinar música, como ele faz – introdução musical – a um grupo de jovens. a Sinfônica de Heliópolis faz parte do Instituto Baccarelli.
Olá, meu nome é Sandra Regina Chaves Nunes e eu sou professora da FAAP, da FATEC e da USP, mais especificamente do programa de pós-graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música de Heitor Villa-Lobos continua de fundo

Marcelo Abud:
Em 199, a favela de Heliópolis sofre um incêndio que deixa centenas de pessoas desabrigadas. O fato motiva o maestro Silvio Baccarelli a ensinar música a jovens de uma escola pública da região. É o início do que mais tarde se torna a primeira orquestra formada em uma favela, a Sinfônica Heliópolis.

Sandra Nunes:
Tem ações que são pregressas. Desde o Villa-Lobos tem histórico dessa preocupação com política e educação musical. A gente não pode esquecer o Mário de Andrade aqui no Brasil. Mas eu queria ouvir desses músicos o quanto isso tinha feito diferença.
Tinha uma das falas que era assim ‘eu podia pegar num revólver ou no violino. Eu fiz a opção pelo violino’. Uma forma de tirá-lo de uma condição que é de vulnerabilidade. E foi efetivamente nas entrevistas que eu pude ouvir o quanto mudou. E não só mudou pra ele, mas muitas vezes mudou pra família dele.
Essa abertura de horizontes, passar a sonhar ter outro estilo de vida, que ele não imaginava pra ele.

Música: “Algo Parecido” (Samuel Rosa), com Samuel Rosa e Orquestra Sinfônica Heliópolis
Você bem que podia vir comigo
Para além do final dessa rua
Pro outro lado da cidade
(emocionado) Por que a gente é o quê? A gente é parecido!

Sandra Nunes:
Heliópolis tem muitas ações educacionais e culturais, muitas mesmo. Tem projeto lá de rádio, de TV, tem cinema, tem de teatro. Nossa, eles têm coisas incríveis. Então as mães deixam as crianças lá, porque também é uma forma de ter um espaço… lembrar que são mães trabalhadoras, que são mães que precisam se articular muitas vezes pra ver como é que você deixa o cuidado dos filhos. Então esses locais culturais ocupavam um lugar singular.
A primeira formação ela foi meio por acaso, muitas vezes entra e depois começa essa descoberta mesmo por som.

Áudio de trecho do vídeo institucional da Orquestra Sinfônica de Heliópolis

Marcelo Abud:
Isaac Karabtchevsky – diretor do Instituto Baccarelli

Isaac Karabtchevsky:
Música é vida. Eu diria que aqueles que não são atingidos por ela, tem a vida pela metade.
Depoimentos de integrantes da Orquestra:
– Eu não sei o que seria, eu não sei o que eu faria, se não fosse a música na minha vida hoje.
– A música é pra mim um relaxamento pro meu coração.

Sandra Nunes:
Tem ali uma iniciação, que muitas vezes leva efetivamente os músicos para a Orquestra. Lógico que são anos de estudo musical, a gente sabe que tem uma dedicação muito exclusiva. O Instituto Baccarelli tem financiamento, a duras penas, mas tem uma bolsa para quem continua para que eles possam se manter.

Marcelo Abud:
Para atrair diversos públicos e, também, mais crianças e jovens de Heliópolis, a Orquestra se apresenta com artistas das mais variadas vertentes musicais.

Sandra Nunes:
Vai se dedicar, vamos dizer assim, à música de concerto, mas não só. Eles têm aí um desejo de formar público para música, então fazem muitas vezes um repertório que dialoga com a música popular, com questões que são do próprio cotidiano daqueles meninos.
O que que é você estudar música no contexto em que os sons invadem os territórios uns dos outros? São muitas pessoas que moram junto, às vezes.

Música: “É o fim do mundo” (Lenine e Mariana Aydar), em concerto da Orquestra Sinfônica Heliópolis e Mariana Aydar (2022)
É o chamado de lá
É o chamado pra gente acordar
É o chamado de lá

Sandra Nunes:
O que você vê é que tem uma troca musical, que, talvez, precise de projetos como esse de iniciação para permitir uma abertura. Não que a gente ache… porque eu acho que essa ideia de que é melhor ou pior, também é algo que não faz mais sentido. Mas o que você oferece pra ele, o que é possível ele ter acesso. A tudo!

Marcelo Abud:
Nunes entrevistou treze integrantes da Orquestra Sinfônica Heliópolis. A proposta foi investigar a relação entre música e cidadania no cotidiano dessas pessoas.

Sandra Nunes:
Teve uma menina que a mãe ficava felicíssima e que ela conseguia ganhar dinheiro com música – porque no primeiro momento ninguém acredita: ‘como assim, você vai escolher música? Olha a sua realidade, de onde você vem, o seu lugar social’. E aí a mãe ficou impressionada, porque ela fala disso. ‘eu posso viver fazendo o que eu gosto e eu tenho o salário que eu levo pra minha família’.

Marcelo Abud:
A professora ouviu ainda o relato de um jovem que não contava com o apoio da família em relação às escolhas para o futuro.

Sandra Nunes:
E ele queria – olha que interessante – ele queria fazer filosofia. Então isso é uma crise pra ele, porque na realidade a música levou para um caminho que não era o desejado pela família. Quer dizer, não queriam que ele fosse músico, porque queriam uma profissão ou alguma coisa mais próxima do cotidiano deles, que eles achavam que era o que ia garantir a manutenção dele pro resto da existência. E esse menino vai pra música e depois ele queria fazer filosofia. Mas ele também estava estudando várias orquestras nos Estados Unidos.
E ele disse pra mim ‘eu não sonhava antes’. Não é que ele viajou, mas pela música ele viu a possibilidade de viajar. Ele viu a possibilidade de ir além. Como todos, o que todos diziam é ‘a gente passou a sonhar que há possibilidade de ser, que a gente pode ir para um outro lugar.’

Marcelo Abud:
Nunes percebe que a música promove a consciência individual, sem deixar de lado a importância do convívio coletivo.

Sandra Nunes:
Porque eles também passaram a olhar para o outro de uma forma diferente. Desde a comunidade, então eles diziam ‘não tem preconceito com os colegas que vão para o baile funk’, mas com uma ideia de grupo e de quanto é o trabalho em grupo que também reforça o individual. Na orquestra é fundamental, não dá para tocar de uma outra maneira. Não dá para ser uma voz dissonante.
Essa harmonização, essa sincronia permite, também, o equilíbrio individual, permite olhar para o outro de uma outra forma. Então reforça mesmo o indivíduo, mas dá o sentimento de pertencimento ao mesmo tempo, o que é fundamental esses espaços assim de coletivo.

Música: “Era uma vez” (Kell Smith), gravada no show “Heliópolis e Simoninha Convidam André Frateschi e Kell Smith” em 12 de março de 2023
Pra não perder a magia de acreditar na felicidade real
E entender que ela mora no caminho e não no final
É que a gente quer crescer
E quando cresce quer voltar no início

Música permanece de fundo

Marcelo Abud:
A pesquisa realizada por Sandra Nunes conclui que a arte possibilita mudança de vida de jovens da favela, ao apresentar alternativas de inclusão e de transformação social.
Marcelo Abud para o podcast de Cidadania do Instituto Claro.

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