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No ano em que completa uma década de atuação como quadrinista, Lino Arruda lança seu primeiro livro. O projeto “Monstrans: experimentando horrormônios”  foi viabilizado após ter sido contemplado no “Itaú – Rumos Culturais”. A obra reúne três narrativas autobiográficas escritas e ilustradas pelo artista trans. “Eu quero que as pessoas permitam que mais histórias diferentes existam, que elas consigam se relacionar com isso, dialogar com isso também. Que aquilo consiga tocar e gerar reflexões.”, revela.

HQ de Lino Arruda
Ilustrações de Lino Arruda no livro ‘Monstrans: experimentando horrormônios’ (crédito: divulgação)

As três narrativas que integram o livro têm como fio condutor a figura monstruosa. Na primeira HQ o autor reconta a “história de origem” de sua deficiência congênita nas pernas. A segunda imagina pontes entre as experiências lésbicas e as transmasculinas, muitas vezes narradas como antagônicas. Na terceira, intitulada “Eu ainda fui”, o autor ilustra a ocasião em que viu seu avô pela última vez, em seu leito de morte.

“Ele estava no hospital e eu já estava me hormonizando e ele não me reconheceu. Então eu uso uma figura de um monstro que vai se derretendo, que vai perdendo a face, vai perdendo a boca, que já não pode mais ser quem era, porque não está sendo reconhecido.”, conta.

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Atualizado em 11/08/2021, às 10h59

Transcrição do Áudio

Música: “Futuro”, de Reynaldo Bessa, de fundo

Lino Arruda:
Eu quero que as pessoas permitam que mais histórias diferentes existam. Que elas consigam se relacionar com isso, dialogar com isso também, né? Que aquilo consiga tocar e gerar reflexões. Tanto de gerar mais informação, mais conhecimento para os desavisados, pra quem nunca tinha pensado sobre isso, quem tinha curiosidade e não sabe por onde buscar, como também pra a própria comunidade, né?
Meu nome é Lino Arruda, eu sou quadrinista, ilustrador, doutor em literatura; faço principalmente quadrinhos sobre o tema da transmasculinidade, da lesbianidade e das questões LGBTQIAP em geral.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
“Monstrans: experimentando horrormônios” é o livro que está sendo lançado por Lino Arruda. Contemplado pelo projeto “Itaú – Rumos Culturais”, o quadrinista tem divulgado parte do processo criativo do projeto em redes sociais desde 2019. “Monstrans” tem como proposta é trazer um olhar autobiográfico para temas como deficiência, lesbianidade e transmasculinidade. Uma das motivações para tratar desses assuntos, – o que faz por meio de zines há 10 anos -, vem de uma imagem que marcou a infância de Lino.

Lino Arruda:
Eu devia ter uns 8 anos quando eu vi aquele programa do “TV Pirata”. Tinha um quadro que chamava “As Presidiárias” e um personagem que era interpretado pela Cláudia Raia chamava Tonhão, personagem masculino, mas ele estava numa prisão feminina, uma representação bem precária, bem delinquente, ‘drogradito’, sem articulação, que não consegue falar de si, que não consegue elaborar. Pobre, né? Então tem toda uma camada de vulnerabilidades nele e, ao mesmo tempo, ele é uma figura ameaçadora. Ele é apresentado como o nome de registro, como o nome de mulher e, ao mesmo tempo, uma figura que já está neutralizada, que já está na prisão, que já não pode fazer mal a ninguém, nem ser mais nada. Não era uma imagem pra você achar interessante, era uma imagem que é o que eles chamam de ‘um ponto pra você ter medo’, pra você não ir por esse caminho.

Trecho do programa TV Pirata:
Locutor: (trilha triunfal) Tonhão é dotada de uma personalidade forte, além de um invejável cruzado de direita e uma vasta coleção de suportes atléticos. Condenado há 28 anos, por ter seduzido e estuprado as 456 alunas do “Educandário das Normalistas Carmelitas”.

Lino Arruda:
Numa linha de roteiro, de criação de personagens trans, é muito comum, nos anos 90 até os anos 2000, mas até antes, no cinema, principalmente, os personagens que são criminosos, que é pra ter medo, ou então os assassinos em série que são mulheres transexuais, né, no cinema clássico, tem toda essa produção cultural nesse sentido. E agora a gente tem uma série de produções culturais também que não são feitas, a maioria, por pessoas trans, que meio que tentam reverter essa representação. Então deve ‘salvar’, então a pessoa trans vira a vítima, a coitadinha, a pessoa que é boa, que precisa de empatia, tal. Acho que no meu trabalho o que eu tento fazer é justamente me apropriar dessa representação com a qual eu vivi, que é estigmatizada, que é uma representação monstruosa – pra falar da minha posição subjetiva, das minhas experiências, dar meu resgate, mas uma apropriação seletiva e uma ressignificação do que que esse “monstro” pode significar, em termos, “que potencias que ele tem”, né?

Música: Elevação Mental (Triz)
Onde isso vai parar?
Se eu nasci com dom eu sei que vou continuar
Eu cheguei na cena, fiz um poema
Pro seu coração escutar

Marcelo Abud:
As narrativas que integram o livro têm como fio condutor a figura monstruosa. Uma das propostas é questionar o anseio por visibilidade.

Lino Arruda:
Então, na introdução, eu uso a bactéria, o pus, a acne, essa coisa mais escatológica, grotesca, pra falar um pouco sobre criação de redes. Na primeira história, que chama “Terapia de Conversão”, é sobre a minha infância, eu falo um pouco sobre esses tratamentos pra curar essa deficiência. Eu tenho uma síndrome de Ehlers-Danlos, é uma síndrome de articulação, é um problema de colágenos. Leva a mobilidade reduzida e a dor crônica, então eu nasci com má formação nas pernas, pernas viradas para dentro. Eu tinha dificuldade pra andar, passei por vários tratamentos. E aí a figura que eu escolhi foi a figura do rato, uma figura mais mamífera, mais híbrida, com animais. Essas imagens elas se destacam bastante no livro, porque foram as partes onde eu tive mais prazer em desenhar. É uma história que eu fiz há bastante tempo que fala tanto sobre deficiência como lesbianidade, como transmasculinidade, como tudo que é tido como diferente.

Marcelo Abud:
Lino Arruda faz uma leitura e a audiodescrição dessa primeira HQ. “História de Origem” usa a figura do rato para representar a deficiência congênita nas pernas.

Lino Arruda:

Trilha instrumental de Reynaldo Bessa ao fundo
Lino Arruda:
“Quando eu era criança eu não suportava lugares cheios de gente, mas tinha um lugar muito movimentado que eu gostava de ir, que era na feira. Feira de rua, que eu adorava ver as frutas coloridas”. Aí nesse quadro tem a personagem que é um ratinho olhando várias frutas coloridas. Aí no próximo quadro… “Mas geralmente quando eu voltava da feira, a minha mãe ficava chateada”. Aí mostra o ratinho com a sacola, mostrando a sacola pra mãe – e a mãe, assim, um pouco chateada com a mão na cabeça. “Eu só precisava escolher as frutas certas: as mais bonitas, simétricas e frescas. As mais desejáveis. E eu sabia qual deveria ser a orientação do meu desejo”. Aí o ratinho pega uma maçã bem bonita, bem vermelha. “Mas eu sentia uma atração enorme pelas… aquelas ameixas moles, as cenouras bifurcadas, os tomates deformados cheios de tumores”. Aí tem essas representações dessas frutas, né? “Eu tinha que levá-las pra casa. Eu sabia que ninguém mais ia querê-las. E aquele sentimento era tão familiar”. Aí o ratinho pega em todas essas frutas e vai colocando dentro da sacola… “Mas não era pena ou dó que eu sentia pegando aquelas frutas e verduras”. Aí mostra a mão do ratinho pegando uma cenoura bifurcada, uma cenoura que tem tipo duas pernas tortas, assim, embaixo. “Era autoreconhecimento”. Aí a cenoura vira também parte do corpo do rato, com metade as penas da cenoura, metade, do ratinho.

Trilha vai baixando

Lino Arruda:

Aí na segunda história eu falo sobre fantasmas, né, eu falo sobre vidas passadas, essa história chama “Segunda Natureza”. Eu tenho essa ideia dessa cisão da transexualidade, né, quando você vira homem, quando você é mulher e vira homem. Fui mulher, escrevo como homem, né, é o que eles chamam da “cisão transexual’. Então eu uso essas figuras fantasmagóricas do passado, que ainda é presente, porque é o passado que informa dos ditames da masculinidade cis, heterossexual… E na última história, que chama “Eu ainda fui”, eu conto um relato da última vez em que eu fui visitar o meu vô. Ele estava no hospital e eu já estava me hormonizando e ele não me reconheceu. Então eu uso uma figura de um monstro que vai se derretendo, que vai perdendo a face, vai perdendo a boca, que já não pode mais ser quem era porque não está sendo reconhecido. Então não sabe mais como interagir e tal. Essas imagens, principalmente as dos monstros, eu fiz com muito prazer, com muito detalhe, eu acho que expressando muito esses momentos de inteligibilidade, de desconforto, e ao mesmo tempo são imagens que se apropriam, que se empoderam dessa posição do monstro, né? Existe também uma estratégia desse uso.

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
A maneira de Lino contar as diferentes etapas que enfrentou até encontrar sua cidadania é poética e forte. Isso inspira outras pessoas que vivem dramas parecidos a se fortalecerem em suas próprias identidades. O livro “Monstrans: experimentando horrormônios” tem versões em português, inglês e espanhol e uma parcela da tiragem é destinada à distribuição em centros de acolhimento e grupos de referência autônomos e institucionais voltados à comunidade LGBTQIA+.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

 

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