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O livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento” é o resultado de três anos de estudos do Laboratório de Pesquisas em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) da Universidade de São Paulo (USP). Organizado pelo psicanalista Christian Dunker e os professores Vladimir Safatle, da filosofia, e Nelson da Silva Junior, da psicologia social, a obra aborda o neoliberalismo não apenas como modelo socioeconômico.

Neoliberalismo para além da economia

“Em linhas gerais, o neoliberalismo é uma teoria que vai se expandindo para uma forma de psicologia, uma forma de moralidade, de resolver os conflitos humanos, pensar a religião, a arte, a vida. E é isso que esse livro aborda, ao falar do neoliberalismo como uma forma de vida interessada em gerir – no duplo sentido, de produzir e administrar – sofrimento”, afirma Dunker.
O estudo conclui que o neoliberalismo é baseado em um conjunto de práticas de gerenciamento do mal-estar, como a individualização da culpa, o repúdio ao fracasso, o louvor ao mérito e a criação de um estado de crises e reformulações.

“Sofrendo mais, a pessoa produz mais. Sofrendo mais, eu percebo e me aproprio do capital do sofrimento como valência produtiva para maior engajamento no trabalho, para aumentar a extensão do tempo de trabalho, para empreitar a própria formação do indivíduo nas costas dele mesmo e não mais na empresa protetora, não mais no Estado protetor”, argumenta o pesquisador.

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Transcrição do Áudio

Música: Introdução de “O Futuro que me alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo

Christian Dunker:
Nós estamos permanentemente avaliando o outro, que efeito isso tem sobre a subjetividade: avaliando a si mesmo, julgando a si mesmo, dizendo a si mesmo ‘olha, eu devia estar em um patamar mais elevado que eu estou. Expressão que ilustra bem isso ‘saia da sua zona de conforto’, conforto não é bom. O que é bom, então? Desconforto! Mantenha consigo, no fundo é isso o que está sendo dito, a relação de inadequação. Nunca se sinta adequado aos seus objetivos, às suas metas, porque o bom é você se sentir cruzando limites, indo além de você mesmo, quer dizer, a história experiencial, bem-vivida, ela não vale nada, porque o que vale é o último quarto.
Então não é ao acaso que a depressão tem aparecido como forma dominante de sofrimento no momento em que a gente tem o neoliberalismo típica de produção e consumo.
Eu sou Christian Dunker, psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da USP.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
Resultado do trabalho de três anos de estudos do Laboratório de Pesquisas em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, o livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento” foi organizado por Christian Dunker, Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior. Antes de tratar de consequências morais e psicológicas que decorrem desse modelo socioeconômico, Dunker resume o que caracteriza o neoliberalismo.

Christian Dunker:
Ele foi posto em prática a partir dos anos 70 introduzindo um conceito mais genérico de que todas as áreas da experiência humana – os pontos que definem uma forma de vida – devem ser pensados com as mesmas regras com as quais a gente pensa o mercado. Então isso marca o neoliberalismo como uma nova etapa do capitalismo, muito associado com o processo conhecido como globalização. Uma forma de produção deslocalizada – partes do mesmo objeto são produzidas em diferentes partes do mundo -, criou uma flexibilização dos processos de produção e isso levou a o que alguns chamam de capitalismo de marca ou capitalismo imaterial, onde o valor da marca das empresas se impõe ao valor das suas máquinas, dos seus meios de produção, dos seus trabalhadores. Então hoje é mais importante – como o capital anda de um lado para o outro – empresas que compram empresas, empresas que são compostas por outras empresas, até o último elo da cadeia, que é o sujeito, indivíduo como um PJ, empreendedor, no fundo, que olha para a sua vida como uma empresa, o “Você S.A.”.

Música: “Tudo ao mesmo tempo agora” (Humberto Rezende), com Os Possíveis
Tudo ao mesmo tempo agora
Tudo para ontem sem demora

Christian Dunker:
Em linhas gerais, define assim o neoliberalismo como uma teoria econômica, mas como a gente já pode ver uma teoria que vai se expandindo para uma forma de psicologia, uma forma de moralidade, de resolver os conflitos humanos, pensar a religião, a arte, a vida. E é isso que esse livro aborda, né, ao falar do neoliberalismo como uma forma de vida interessada em gerir – no duplo sentido, de produzir e administrar – sofrimento.
Desde sempre, o trabalho esteve associado a algum tipo de sofrimento. A própria palavra trabalho vem do latim tripalium, que é um instrumento de tortura. Trabalhar envolve sacrifício. Até certo momento a gente entendia o sofrimento como uma espécie assim incondicional que vinha junto com o trabalho.

Marcelo Abud:
Dunker aponta que o neoliberalismo tem como estratégia o aumento calculado do sofrimento.

Christian Dunker:
De tal maneira que, sofrendo mais, ela produz mais. Sofrendo mais, eu percebo e me aproprio do capital do sofrimento como valência produtiva para maior engajamento no trabalho, para aumentar a extensão do tempo de trabalho, para empreitar a própria formação do indivíduo nas costas dele mesmo e não mais na empresa protetora, não mais no Estado protetor.

Música: “Tabalhador” (Seu Jorge)
E sem dinheiro vai dar um jeito
Vai pro serviço
É compromisso, vai ter problema se ele faltar
Salário é pouco não dá pra nada
Desempregado também não dá
E desse jeito a vida segue sem melhorar
Trabalhador…

Christian Dunker:
Com isso, a gente vai ter uma leitura possível dos manuais de marketing, dos manuais do capital humano, do empreendedor de si mesmo e, também, da gestão de negócios como autênticos manuais sadomasoquistas, que ensinam como você deixar a pessoa com mais medo – porque com mais medo de ser demitido; como deixar as pessoas com nível ótimo de ódio competitivo em relação ao seu colega, porque aí você produz mais, está numa batalha contra ele. Você produz mais inveja, ensinando como você pode exibir os seus talentos de forma a quase humilhar o outro; política de bônus para produzir incerteza e, dentro dessa incerteza, devoração entre os elementos que compõem aquela empresa, aquela companhia, aquela startup. Estou dando aqui exemplos esparsos de como fazer sofrer – o verbo é administrar mais sofrimento – gera mais produção.

Marcelo Abud:
Uma das práticas comuns ao neoliberalismo apresentada no livro como algo que produz mal-estar às pessoas para além da vida profissional é o ‘avaliacionismo’.

Christian Dunker:
Ela já existia antes, mas ela se torna assim uma espécie de ponto de confluência. Tudo o que você faz, precisa ser avaliado, precisa ter um diagnóstico, precisa ser posto em métricas. Tem que ser assim reconhecido por um ecossistema cada vez mais avaliativo – claro, avaliação sempre foi importante, você não está indo bem, você é demitido – mas nós estamos falando de outra coisa, estamos falando de uma cultura em que a vida no trabalho e a vida das pessoas passa a girar em torno de avaliações. As avaliações se tornam 360 graus, todo mundo avaliando todo mundo. Isto vai gerar o quê? A cultura do cinco estrelas, do quatro estrelas, que vai se associar com a ‘uberização’, com a precarização, com a predação entre as pessoas.

Música: “Eu sou melhor que você” (Maurício Pacheco), com Moreno Veloso
Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta.
Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa.
Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrotas.

Christian Dunker:
E isso é uma fórmula que foi se expandindo na primeira fase do neoliberalismo, que vai de 73 a 2008, e que começa a partir de 2008 a ser percebida pelas pessoas. Então bons candidatos não querem mais ir para o mundo corporativo, você tem discurso sobre sustentabilidade, tem preocupações como assédio no trabalho, uma série de preocupações formais que estão detectando essa estratégia, que é uma política de sofrimento.

Marcelo Abud:
Para Dunker, o livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento” é uma resposta às narrativas de sucesso e aos discursos em que sujeitos são estruturados como empresa.

Christian Dunker:
Ele é um antídoto porque a gente gostaria que as pessoas voltassem a se questionar mais ativamente, mais engajadamente sobre os seus percursos profissionais, sobre as escolhas que muitas vezes implicam e naturalizam o sofrimento. Claro, a gene tem que abrir mão um pouco do hoje para ter um amanhã, mas em que ponto, para você, essa negociação ela se torna uma extorsão, onde está o cuidado consigo, né, onde você está notando sinais em que você resiste a esse processo todo.
Então o que a gente pretende é uma espécie assim de recuo para ‘olha, algumas experiências são importantes e não devem ser assim puladas para a sua saúde mental.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
De acordo com Christian Dunker, práticas de gerenciamento do mal-estar comuns ao neoliberalismo, como a individualização da culpa, o repúdio ao fracasso e o louvor do mérito, constroem formas de sofrimento que se estendem para todos os aspectos das vidas das pessoas.
Marcelo Abud para o podcast de cidadania do Instituto Claro.

 

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