Ouça também em: Ouvir no Claro Música Ouvir no Spotify Ouvir no Google Podcasts Assina RSS de Podcasts

Durante a CPI da Pandemia, depoentes e parlamentares trouxeram conceitos distorcidos em relação aos cuidados paliativos. Diante da confusão gerada, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) se posicionou para explicar o real papel dessa atividade, que visa a melhoria da qualidade de vida do paciente e de seus familiares. “É um conjunto de profissionais que cuida do sofrimento das pessoas que convivem com doenças mais graves”, resume o médico geriatra, paliativista no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e atual presidente da ANCP, Douglas Crispim.

“Essa pessoa é olhada em todo o seu espectro: a dor existencial, social, espiritual. Às vezes, o seu pior medo não é o de sentir dor física, mas de deixar alguém da família. Então, atuam ali em conjunto psicólogo, psiquiatra, assistente social”, completa a jornalista Juliana Dantas, criadora do podcast Finitude.

No áudio, Crispim relata a situação de uma paciente que teve a oportunidade de ser madrinha de casamento, mesmo com doença em estágio avançado. Já Dantas fala sobre a experiência de ver a avó e o pai receberem cuidados paliativos: “Chega um momento em que não é mais ‘que’ a pessoa vai morrer, mas ‘como’ ela vai morrer (…) e ver pessoas partirem com dignidade, nos dá dignidade também”.

Veja mais:

Faltam políticas públicas para garantir saúde a idosos LGBTI+

Transcrição do Áudio

Música: “O Futuro que me alcance”, de Reynaldo Bessa, em versão instrumental, fica de fundo

Douglas Crispim:
Eu gosto de trazer sempre que cuidado paliativo fala de vida de pessoas que estão convivendo com doenças. Muito se fica ali em cima de fazer novas medidas, de buscar novos procedimentos. Sempre, claro, com uma visão curativa. E isso é muito legal, também, só que é importante a gente saber que a doença acontece dentro do corpo de um indivíduo. Não é normal você ter um parente e você estar sofrendo e ele estar sofrendo junto com a doença. Não tem um sofrimento normal, todos podem ser melhorados.
Olá, meu nome é Douglas Crispim, eu sou médico geriatra e paliativista, trabalho no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, no Núcleo de Cuidados Paliativos. E estou como presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos – 2021-2022.

Juliana Dantas:
Apesar de tudo, né, eu costumo dizer que a morte ela tem um núcleo intrínseco de dor: perder alguém não é legal. Alguém que você ama partir, vai doer, só que é como se fosse uma bola muito pontuda e os cuidados paliativos viessem aparando essas arestas, até deixar só o núcleo de dor, que é intrínseco à condição de a gente perder alguém.
Oi, meu nome é Juliana Dantas, eu sou jornalista e apresentadora do podcast Finitude, ao lado do tamb ém jornalista Renan Sukevicius.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
A Constituição de 1988 estabelece, entre os Direitos Fundamentais, o direito à Vida, à Saúde e à Dignidade da Pessoa Humana. Pouco tempo depois, em 1990, a Organização Mundial da Saúde definiu a importância dos Cuidados Paliativos para a melhoria da qualidade de vida de pacientes e familiares.

Douglas Crispim:
É um conjunto de profissionais que cuida do sofrimento das pessoas que convivem com doenças mais graves.

Juliana Dantas:
E essa pessoa é olhada em todo seu espectro: a dor existencial, social, espiritual (às vezes, o seu pior medo não é o de sentir dor física, mas de deixar alguém da família). Então atua ali em conjunto psicólogo, psiquiatra, assistente social. Para o caso de dor física, existe um manejo muito técnico de medicamentos e de procedimentos, né, porque, muitas vezes, também, acaba parecendo que cuidado paliativo é só ‘fofura’, mas, na verdade, tem muita técnica, tem muito estudo.

Música: “Não tenho medo da morte” (Gilberto Gil)
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar

Douglas Crispim:
Como a sociedade envelheceu – e isso é muito bom – a medicina avançou, a gente vai viver mais tempo. Muitos de nós vai conviver com doenças. E esse convívio com as doenças ele pode ser muito menos sofrido quando a pessoa tem um acompanhamento especializado. Mas, quando você começa a tomar os remédios e a doença pode te dar alguns sintomas, como: dores, falta de ar, vômito, tonturas, confusão mental. E os tratamentos também podem te dar esses sintomas.
E, além desses sintomas físicos, a doença pode… você deixar de fazer algumas coisas, a sua família sofrer junto, você ficar com medo, você não sabe como que vai ser daqui pra frente. Tudo isso constitui uma série de sofrimentos que convivem com você enquanto você vai conviver com a doença.
O cuidado paliativo ajuda muito a fazer uma boa adaptação a essa doença. Por isso que ele deve acontecer desde o início do diagnóstico de uma doença que você vai conviver com ela, ou seja, doença crônica.

Marcelo Abud:
Douglas lamenta que a inovação e a flexibilidade nos ambientes de saúde ainda sejam uma exceção no Brasil.

Douglas Crispim:
Eu vejo que, às vezes, uma pessoa recebe um cachorrinho dele no hospital, né, ou, às vezes, uma pet terapia, e aí a gente vai procurar naquele hospital ‘ah, vocês têm, então, um protocolo pré-estabelecido?’ (né, porque o que vale para um vale para todos). ‘Ou foi só uma exceção?’. Às vezes, você vê uma festa de aniversário ou um casamento, no hospital (passa na televisão), mas a gente gostaria que essa flexibilização fosse para todos.
Tem normas de segurança que têm que ser seguidas, obviamente, por isso que a gente fala que as unidades de cuidado paliativo, idealmente, as unidades de internação, elas não devem ser hospitais. Elas devem estar em alguma unidade extra- hospitalar ou tem que ter uma área de hospital separada, para que a segurança do paciente não seja comprometida.
Nas implementações que eu participo, a gente teve que incluir um arquiteto. A gente tem toda uma preparação desde a iluminação até o tipo de cama, o tipo de mesa e o tipo de acesso de coisas que esse paciente vai ter quando ele está internado.

Marcelo Abud:
Em um intervalo de três meses, Juliana Dantas perdeu a avó materna, Olga, e seu pai, o jornalista Audálio Dantas. Foi nesse período que tomou contato com os cuidados paliativos.

Juliana Dantas:
Olha, pra mim, perder alguém que eu amo, sob cuidados paliativos, foi um privilégio, uma oportunidade e foi sinônimo de dignidade. Chega um momento que não é mais ‘que’ a pessoa vai morrer, mas ‘como’ ela vai morrer. Obviamente eu não desejava nem que a minha vó nem que o meu pai morressem. Mas era uma situação flagrante, aquilo ia acontecer. Então ‘o como’ ele importa muito. E ver pessoas partirem com dignidade, nos dá dignidade também. Ao passo que se a gente vê novas camadas desnecessárias de dor, como falta de atendimento ou negligência médica, ou, pelo contrário, excesso de intervenção de tubos de sedação etc. – muitas vezes, isso pode vir a se traduzir em novas camadas de dor.

Marcelo Abud:
Com mais de uma década atuando em cuidados paliativos, Douglas Crispim acredita ter ultrapassado 2 mil atendimentos. Entre os que mais marcaram, está o de uma universitária que tinha 20 anos de idade e estava agressiva e tratando mal as pessoas ao redor, devido à condição de saúde que a acometia.

Douglas Crispim:
Então, eu lembro que eu cheguei sem jaleco, né, que é uma coisa que, às vezes, eu acho muito importante. Sentei do lado e aí ela falou: “o que é que foi?”. E não falei nada, fiquei só olhando e, de repente, os dois começaram a rir, né, e dali a gente já se conheceu, fez uma amizade muito legal. E ela já estava em fim de vida quando eu conheci. Ela ficou internada conosco, conseguiu ter saídas de final de semana (ela não conseguiu ficar somente em casa, porque era um caso que precisava muito de internação). Mas ela conseguiu ser madrinha de casamento, escolher seu vestido, a gente conseguiu que ela ficasse com a mãe dela até o último momento. E foi uma pessoa que, também, eu levo muito no meu coração.

Juliana Dantas:
Estar em cuidados paliativos é você estar sendo visto como um indivíduo e não como “um câncer de fígado do quarto 12”. A humanização, o olhar para o paciente como um todo, como um ser biográfico, ‘realizante’, não homogeneizado – guardar as particularidades daquela pessoa que está partindo, e também da família – acaba fazendo bastante diferença.

Música: “Laço” (Igor de Carvalho)
Se não houver além, meu bem, não há motivo!
Sendo irrelevante, revele o verdadeiro e absoluto
Grito de um desejo utópico que repele o óbvio e o superficial

Douglas Crispim:
Eles ensinam pra nós que a doença traz a essência da vida de volta. Aquilo que é supérfluo, na hora que a pessoa está doente, ela descarta na hora. Então ela tem um contato imediato com a sua verdade mesmo. Então a gente que convive com essas pessoas a gente tem a oportunidade de ter contato com a verdade: aquilo que é a nossa essência, aquilo que importa, o que não importa também, sem estar passando por um fim de vida.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
Segundo o presidente da ANCP, o Brasil carece de política pública em cuidados paliativos. O Hospital das Clínicas, da USP, onde atua desde o início da atuação como médico, é uma exceção. Douglas Crispim luta para que um dia todos possam acessar os cuidados paliativos.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Receba NossasNovidades

Receba NossasNovidades

Assine gratuitamente a nossa newsletter e receba todas as novidades sobre os projetos e ações do Instituto Claro.