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O geógrafo Milton Santos morreu em 24 de junho de 2001, mas permanece vivo nas reflexões que deixou e é considerado um dos principais estudiosos brasileiros. O pensamento do professor se expandiu para muito além de sua área de estudos, a geografia. Em sua obra, destacam-se, entre outros temas, os estudos sobre a urbanização nos países subdesenvolvidos.
“E defendendo um argumento muito interessante, de que a urbanização no Brasil foi tardia e, em que pese essa situação, nós não conseguimos superar um cenário de desigualdade. Ao contrário, reforçamos no próprio processo de urbanização que tivemos aqui.”, afirma o professor dos programas de pós-graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo Wagner Costa Ribeiro, que conviveu com Santos e é ouvido neste podcast.

Outra globalização

Pela geografia, Milton Santos vê no território uma maneira de refletir sobre a vida social e política. Crítico à forma como se construiu a globalização, via, já no final do século XX, o mundo caminhando para o aumento da desigualdade. No entanto, não perdia o otimismo e propunha outros rumos, regidos pelo pensamento de que “o mundo é formado não apenas pelo que existe, mas pelo que pode efetivamente existir”, como destacou em seu livro “Por uma outra Globalização”.“O grande destaque que ele trazia é justamente essa ideia de uma globalização solidária, inclusiva. Uma globalização onde talvez nós não tivéssemos as empresas concorrendo umas com as outras, mas atuando de maneira cooperativa”, explica Ribeiro.

O podcast ouviu também a neta de Milton Santos, a professora e jornalista Nina Santos, responsável pelo site que mantém viva a memória do avô e que demonstra o quanto seu legado vai além da própria geografia. “É uma obra muito inclusiva, que tenta entender a forma como diversas pessoas se relacionam com esse mundo e como esse mundo afeta a vida de diferentes pessoas, diferentes classes sociais, estruturas de renda, de educação, posições geográficas.”, sintetiza Nina.

Legado

As propostas de Milton Santos são consideradas bastante atuais e repercutem em várias partes do mundo nos dias de hoje. Ele foi o único brasileiro e o primeiro intelectual de um país que não tinha o inglês como língua pátria a receber o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, em 1994, reconhecimento que equivale a um Prêmio Nobel de Geografia.

A obra miltoniana reúne mais de 40 publicações literárias, traduzidas em inglês, espanhol, japonês e francês. Entre alguns de seus títulos, destacam-se: “Ensaios sobre a urbanização latino-americana (1982)”, “A urbanização brasileira” (1993) e “Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal” (2000).“Eu diria que ele nos deixa uma certa responsabilidade, que é, a partir desse legado, entender o Brasil contemporâneo, entender o mundo contemporâneo, na perspectiva de tornar esse país menos injusto, onde o ódio não domine e não esteja no comando como está hoje”, conclui o professor Wagner.

Veja mais:

Plano de aula – Encontro com Milton Santos: por uma outra globalização

Transcrição do Áudio

Música: “O Futuro que me alcance”, de Reynaldo Bessa, em versão instrumental

Wagner Costa Ribeiro:
O professor Milton tinha uma ironia muito poderosa, que vinha com um aporte conceitual vigoroso. Sem dúvida ele estaria nos ajudando a entender e essa globalização contemporânea, além de propiciar a transmissão de vírus, como ocorreu já em outros momentos da história também, mas desta vez a velocidade foi maior, dado o próprio processo de intensificação de circulação de pessoas, de mercadorias, de capital. Mas ele foi uma pessoa muito criativa, certamente estaria enxergando algo que a gente não está vendo ainda. Nesse aspecto eu acredito que ele faz muita falta. Eu tive o prazer e o privilégio de conviver com ele, era meu vizinho de sala, no departamento de Geografia.
Eu sou Wagner Costa Ribeiro, sou geógrafo, professor dos programas de pós-graduação em ciência ambiental e, também, em geografia humana da Universidade de São Paulo.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Milton Santos é conhecido em boa parte do mundo como o professor que expandiu as fronteiras da geografia. Considerado um dos principais pesquisadores brasileiros, em sua obra, destaca-se a proposta de uma outra globalização e estudos sobre a urbanização nos países subdesenvolvidos.

Wagner Costa Ribeiro:
E defendendo um argumento muito interessante que a urbanização no Brasil foi tardia e em que pese essa condição, nós não conseguimos superar o cenário de desigualdade, ao contrário, reforçamos no próprio processo de urbanização que tivemos aqui. Outro tema muito recorrente – ele está escrevendo no final dos anos 90, começo desse século – um outro modelo de globalização. Havia todo um movimento naquela época, eu diria até otimista, de que era possível construir um outro mundo e o Milton se engaja, se envolve com essa temática. Há uma frase dele que eu gosto muito: “O problema da globalização não são os meios técnicos, os meios técnicos estão dispostos ao nosso uso, o problema está em que uso daremos aos meios técnicos que estão aí”.

Música: “Conformática” (Ayrton Mugnaini Jr.), com Língua de Trapo
– Fim de século é informática, é mais que isso, é conformática…
Computador nasceu para ajudar a gente
Mas no fim acabou sendo vice-versa

Wagner Costa Ribeiro:
Isso me parece bastante importante, inclusive no contexto pandêmico que nós vivemos. Nós temos aí uma série de possibilidades de interação social. E, se por um lado, permite essa interação – e ainda bem, né, senão seria ainda mais difícil suportar esse momento – mas, por outro lado, também ela acaba gerando uma imensidão de dados que são apropriados por empresas de caráter global, que fazem o que bem entendem com esse volume de informação, não nos comunica o que faz com isso, né? Ele ressalta justamente esse lado perverso, mas também um lado otimista. E me parece que a pandemia deixa muito claro essas duas faces do pensamento do Milton em relação à globalização.

Marcelo Abud:
Neta de Milton Santos, a professora e jornalista Nina Santos é responsável pelo site miltonsantos.com.br. Nele há conteúdos em vídeo, áudio e textos que demonstram de que forma os estudos do geógrafo contemplam diversas áreas.

Nina Santos:
Pra quem lê a obra hoje, ela dialoga com os mais diversos campos. São usadas evidentemente nas ciências sociais, sociologia, na ciência política, na própria geografia, na história, mas também na comunicação, nas ciências médicas, na biologia, inclusive no desenvolvimento de políticas públicas. E, além disso, eu acho que foi uma obra muito inclusiva, de tentar entender a forma como diversas pessoas se relacionam com esse mundo e como esse mundo afeta a vida de diferentes pessoas, diferentes classes sociais, de estruturas de renda, de educação, posições geográficas. E também o diagnóstico que ele faz da realidade é extremamente crítico, mas ao mesmo tempo ele tenta apontar saídas para outros mundos possíveis, né, uma outra globalização, pra fazer referência ao último livro publicado dele em vida, “Por uma outra globalização”. Então eu acho que é uma obra também que aponta pra frente, daí a atualidade, inclusive.

Wagner Costa Ribeiro:
Em relação à globalização, o grande destaque que ele trazia é justamente essa ideia de uma globalização solidária, inclusiva, menos competitiva e mais cooperativa. Uma globalização onde, talvez, nós não tivéssemos empresas concorrendo umas com as outras, mas atuando de maneira cooperativa. E isso é muito fácil de imaginar em termos de ciclo de vida de produto, por exemplo, o computador, o telefone celular, o ônibus, ele pode ser pensado na produção de maneira cooperativa, onde cada empresa pode desenvolver parte desse produto. E, ao final, você tem um produto completo. Hoje nós temos, na verdade, o que muita gente diz que é vantajoso, que é a competição, quando na verdade nós temos um enorme desperdício de tempo, de energia, de pesquisa, de materiais, porque um produto que uma empresa faz um enorme esforço para lançar no mercado, às vezes, com menos de um mês a concorrente vem e lança um produto aparentemente mais eficiente e faz com que todo aquele investimento inicial se perca. E a nossa sociedade ela não está mais podendo perder pesquisa, investimento, recursos naturais. Água, inclusive. Lamentavelmente o mundo contemporâneo não está pronto ainda para as ideias do Milton Santos.

Marcelo Abud:
O professor Wagner ressalta que Milton Santos via a cidade como um sistema de objetos.

Wagner Costa Ribeiro:
Uma via, um viaduto, ou mesmo aqueles dutos que estão nos subterrâneos, de água, esgoto, cada item é um objeto construído, edificado e esses objetos refletem uma capacidade técnica. E o Milton, de maneira brilhante, define a cidade como sistema de objetos e caberia à geografia também entender isso. E aí o Milton, quando vai fazer uma análise na perspectiva da sociedade, ele mostra claramente a desigualdade de acesso a esse conjunto de objetos.

Música: “Pavimentação” (Arnaldo Antunes e Paulo Miklos), com Titãs
Ninguém sabe como a gente é feita
Se a gente é feita ou não
Mão esquerda
Mão direita
Bate palma então
(Pá, pá, pá) pavimentação
(Mentalização)

Wagner Costa Ribeiro:
Infelizmente ainda, fundamentalmente no Brasil, que é o país que tem uma das mais elevadas desigualdades sociais do planeta – nós estamos, na verdade, muito mal posicionados em termos de equilíbrio social – quando a gente anda por Salvador, São Paulo, Campinas, enfim, mesmo em cidades menores, a gente enxerga claramente essa desigualdade. Ou seja, os objetos, por exemplo, iluminação pública, não está presente em algumas áreas da cidade; água encanada, não está presente em algumas cidades. Os objetos, por exemplo, coleta de esgoto, coleta de resíduos sólidos, é um serviço que não está presente em determinadas áreas. Então essa desigualdade, né, que o Milton muito bem mostrava me parece também uma grande contribuição pra geografia e para interpretarmos o mundo contemporâneo.

Marcelo Abud:
Wagner Costa Ribeiro é organizador da coletânea de textos escritos por Milton Santos entre 1981 e 2001, “O País Distorcido”. A pesquisa em entrevistas e artigos demonstram o legado deixado pelo geógrafo para o pensamento da cidadania.

Wagner Costa Ribeiro:
Quando a gente assiste hoje, por exemplo, os movimentos sociais lutando por território em comunidades que são subjugadas, mesmo em áreas urbanas, eu diria que ele nos deixa uma certa responsabilidade, que é, a partir desse legado, entender o Brasil contemporâneo, entender o mundo contemporâneo, na perspectiva de tornar esse país menos injusto, onde o ódio não domine e não esteja no comando como está hoje e onde, fundamentalmente, a convivência, a civilidade – valores tão singelos, mas que parecem hoje estar absolutamente ameaçados. Quando a gente anda, por exemplo, em qualquer rodovia, ou mesmo nas áreas urbanas, na velocidade que está indicada na placa e você é absolutamente agredido e tem que andar acima da velocidade, senão os que estão no seu entorno te agridem, eu acho que nós estamos realmente muito longe de construir um país civilizado, um país descente.

Música: “Rua de Passagem” (Lenine e Arnaldo Antunes)
Já buzinou
Espere, não insista
Desencosta o seu do meu metal
Devagar, pra contemplar a vista
Menos peso no pé do pedal
Todo mundo tem direito à vida
Todo mundo tem direito igual

Wagner Costa Ribeiro:
Tivemos momentos recentes de um pouco mais de otimismo, de uma certa capacidade de interlocução, capacidade de convivência democrática, mas isso está sendo destruído, infelizmente, como, no meu ponto de vista um projeto mesmo, e é preciso resistir a isso e mostrar que é necessário ter uma outra globalização, é necessário ter um outro país e as ideias do Milton nos ajudam enormemente a construir de maneira engajada, responsável, um país mais descente e menos desigual.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
O pensamento miltoniano está espalhado em mais de 40 publicações literárias, traduzidas em inglês, espanhol, japonês e francês.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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