Iniciativas pedagógicas que usam o funk para desenvolver um olhar crítico em adolescentes são mais comuns nas aulas de língua portuguesa. Porém, seu potencial também pode ser explorado por outras disciplinas como artes e educação física, assim como para discutir racismo e cultura afro-brasileira nas escolas (Lei 10.639/2003).
“Por meio dessa manifestação cultural, pode-se debater ancestralidade, representatividade negra, quilombo e resistência, racismo policial, orgulho negro, biografias negras, entre outros”, lista o professor da rede pública de Porto Seguro (BA) e mestrando em ensino e relações etnicorraciais Thawan Dias Santana Tannes. “Pode-se analisar letras, discutir documentários, entrevistar funkeiros como mestres do saber, analisar a história do funk ou de determinados beats e apontar como manifestações culturais negras, como o próprio funk, sofreram preconceitos devido ao racismo estrutural”, complementa.
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Segundo o professor da rede municipal de Belo Horizonte (MG) e doutorando em educação Izaú Gomes, antes de trazer o tema para a aula, é importante entender o funk como manifestação cultural, negra, periférica e com mais de cinco décadas de história. “Ela surge nos Estados Unidos até chegar no Brasil, onde se desenvolve derivada do hip-hop”, explica Gomes. “Além disso, falar sobre funk é pensar o direito ao lazer na periferia, onde o estado é ausente; como essa manifestação cultural gera sonhos na juventude, assim como trabalho e renda nesses territórios”, acrescenta.
Outro ponto é entender que o funk possui subgêneros, como o comercial, o melody (romântico), o ostentação (exaltação do luxo), o consciente (críticas sociais) e o proibidão (de apelo sexual). “Há uma riqueza geográfica e de estilos no funk, com cidades como Recife, Belo Horizonte e Belém produzindo hoje novos ritmos, mesclando-o com suas tradições culturais”, lembra Gomes.
Relação com o racismo
Assim como outras manifestações da cultura negra e periférica do passado — caso do samba e da capoeira —, o funk sofre perseguições. “Atribuo isso ao preconceito de classe e ao racismo, por ser originário de um território marginalizado, como favelas, e ser cantado majoritariamente pela juventude preta”, reflete Gomes.
“Como lembrou Mr. Catra: quem faz careta para o funk hoje é neto de quem discriminou o samba e bisneto de quem condenou a capoeira anteontem’”, acrescenta. Para ele, estereótipos do funkeiro como vagabundo, bandido e promiscuo afastam a juventude negra dessa manifestação.
“O olhar racista associa a dança funk ao universo da imoralidade, profanação e promiscuidade, quando o funk trata a dança como algo sagrado e libertador. O corpo negro que dança o funk é um corpo que se reconecta com a África em suas performances”, acredita Tannes.
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Isso não significa, porém, que não haja críticas. “O funk comercial tem o viés da objetificação feminina, da homofobia e carrega formas de opressão que integram a estrutura social atual e estão presentes em outros estilos musicais. A crítica é válida, mas sem a ótica racista”, alerta Gomes.
Funk nas aulas de artes
Segundo Tannes, por meio do funk, é possível abordar as quatro linguagens artísticas: artes visuais, música, dança e teatro.“Por exemplo, analisando a estética e moda do funk; a criação de maquete da favela; elaboração de fanzine sobre a história do ritmo; análise dos signos nas capas de álbuns, das letras e beats”, recomenda.
Em sua monografia “Esse ritmo é envolvente: proposições pedagógicas para o trabalho com o funk e combate ao racismo na escola” (2020), Tannes propõe uma sequência didática de oito encontros. Nela, são analisadas duas músicas, cria-se com os alunos uma “lista negra”, com personalidades pretas e, ao final, são produzidas letras de funk antirracistas para serem apresentadas em sarau para a comunidade escolar.
Para as análises das letras, ele recomenda as canções do funk consciente “Som de Preto” (Almika e Chocolate) e “Rap da felicidade” (Cidinho e Doca). “É a partir de uma conscientização sobre luta de classe, desigualdades sociais, de gênero, raciais, culminada com engajamento crítico, que haverá mudanças nas estruturas sociais. Por isso, foram escolhidas essa atividade e essas canções”, justifica.
“Nas letras, são abordados temas como desigualdade racial, a vida do favelado, o direito à cidade, racismo policial e criminalização do funk”, pontua Tannes. Para analisar coletivamente o “Rap da Felicidade”, o pesquisador utilizou perguntas disparadoras com os alunos: qual a relação do título com a música? Quais temas aparecem? Ela fala de racismo e em qual parte? A qual ‘autoridade’ a música se refere? A música é de alguém que está feliz ou pede felicidade? Qual o sentimento expressado na música? Trata de violência? Em que sentido?
No caso de “Som de Preto”, ele questionou a classe: por que o compositor afirma que o funk é som de preto e favelado? O que é ser favelado? Quem mais escuta funk? Em quais lugares se consome funk? Mesmo sendo música mundana, existe cantor gospel de funk? O que quer dizer esta parte da música: ‘porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real, essa história de porrada isso é coisa banal’? Vocês acreditam que o funk sofre preconceito por que surgiu na favela e pelo fato de a maioria dos seus representantes serem negros? É uma forma de racismo?
História do funk pela dança
Já nas aulas de educação física, Gomes desenvolveu uma sequência didática que conta a história do funk e sua diversidade de ritmos por meio da dança. Experiência narrada no artigo “Poder me orgulhar: “Funk e Educação Física escolar na Educação para as relações étnico-raciais” (2018).
“Iniciei com os bailes blacks cariocas na década de 1970, o Miami Bass e seus passinhos na década de 90, quando o mercado incorpora o funk. Nos anos 2000, começa a erotização e a presença feminina. Por fim, discutimos manifestações regionais do funk (Recife, Belém, São Paulo e Belo Horizonte) e por que o funk conscientização e as letras sociais dele não dominam o mercado”, narra.
Para completar, são apresentados passinhos regionais e a influência que eles recebem de outras culturas. “Em São Paulo, a influência italiana criou o passinho tarantela. Em Belém, o Funk Brega”, ilustra. Gomes ainda indica exibir e discutir o documentário “Sou Feia Mas Tô Na Moda” (2005, Dir. Denise Garcia), sobre as mulheres no funk, e finalizar o processo com uma “batalha de passinho”. “Estipula-se um tempo para cada grupo dançar separado e, ao final, simultaneamente”, ensina.
“É importante que a batalha seja uma criação coletiva, com os estudantes ajudando a escolher músicas, júri e convidando a comunidade escolar”. Na hora de criar propostas pedagógicas utilizando o funk, são necessários alguns cuidados.
Tannes alerta para não utilizar o gênero somente para apontar erros gramaticais nas letras. “É racismo linguístico. Para outros gêneros, normalmente representados pela branquitude, dizemos que é licença poética e, para o funk, erro”. Gomes sugere não omitir a presença de palavrões nas letras ou nos nomes de passinhos, muitos deles parte da realidade estudantil. “Pode haver uma tentativa de higienização”, opina.
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