As lendas são narrativas textuais ou orais que misturam elementos factuais com aspectos imaginários, sem comprovação histórica. “São de autoria frequentemente desconhecida e transmitidas de geração em geração, resgatando a memória e a vida de determinada comunidade”, explica a doutoranda em Educação Matemática na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) Denise Aparecida Ribeiro.
Segundo a pesquisadora, essas histórias podem ser utilizadas para compreender a evolução da matemática e para enriquecer a aprendizagem de conteúdos da disciplina. “Muitas delas estão registradas em livros de história da matemática ou foram recolhidas da tradição oral de alguns povos. Além de revelarem conhecimentos matemáticos, indicam o grau de progresso alcançado por essas comunidades”, destaca.
Muitas das lendas fazem referência à criação de jogos matemáticos. Exemplo é a lenda dos quadrados mágicos, o Lo-Shu, que teria surgido na China há cerca de três mil anos e está registrada no livro Chui-Chang Suan-Shu, traduzido como “Nove capítulos sobre a arte da matemática”.
“As lendas estão diretamente ligadas à vida dos povos que praticavam esses jogos, funcionando como um registro do conhecimento matemático de sua época”, aponta a professora.
Uso em sala de aula
Ribeiro defende que as lendas podem ser exploradas no ensino de matemática em todas as etapas, especialmente nos anos iniciais do ensino fundamental. “Cada narrativa traz um conteúdo que pode ser trabalhado por meio de contação de histórias, resolução de problemas e apresentação do jogo ao qual a narrativa faz referência”, indica.
“Dessa forma, os alunos são instigados ao raciocínio lógico e entram em contato com o conhecimento de maneira contextualizada”, explica.
Além disso, o uso das lendas em sala de aula permite associar ludicidade e informação histórica, ampliando o aprendizado para além da matemática. “Elas possibilitam também inserir leitura e escrita nas aulas, além de estabelecer diálogos interdisciplinares com geografia e história”, afirma.
A pesquisadora ressalta ainda a importância de apresentar o povo de origem da lenda: “Um dos objetivos é desmistificar a ideia de que a matemática seja fruto de apenas uma civilização. Ela é resultado das contribuições de diversos povos ao longo do tempo, o que ajuda a superar uma visão eurocêntrica dessa ciência”, defende.
A seguir, conheça cinco lendas ligadas à história da matemática e à criação de jogos matemáticos por diferentes povos que podem ser trabalhadas em sala de aula.
A lenda do tangram
Um mensageiro recebeu a missão de entregar um espelho quadrado ao Imperador Tan. No caminho, tropeçou e o espelho se quebrou em sete pedaços. Tentando remontá-lo, percebeu que era possível formar diferentes figuras — pessoas, animais e objetos. Assim surgiu o tangram, cujas peças podem ser recombinadas em inúmeras formas.
“Pode-se trabalhar conteúdos de geometria, pois as peças são figuras geométricas, além de área e perímetro”, comenta Ribeiro.
A lenda dos quadrados mágicos
O imperador Yu observava o rio Lo quando uma tartaruga emergiu da água. Em seu casco havia um padrão 3×3 com os números de 1 a 9, cuja soma em linhas, colunas e diagonais era sempre 15. Esse arranjo ficou conhecido como Lo-Shu.
“Trata-se de um quebra-cabeça pelo qual pode-se explicar raciocínio lógico, contagem e progressão aritmética”, relata a pesquisadora.
A lenda da torre de Hanói
De acordo com uma tradição hindu, em um templo havia três hastes e 64 discos de ouro. Monges deveriam transferir os discos de uma haste para outra seguindo duas regras: mover apenas um disco por vez e nunca colocar um maior sobre um menor. A profecia dizia que, quando completassem a tarefa, o templo e o mundo chegariam ao fim.
“Jogo criado para desenvolver o raciocínio lógico, pode-se trabalhar exponenciação e função logarítmica”, indica Ribeiro.
A lenda do xadrez
Conta-se que um jovem sacerdote brâmane criou o xadrez para consolar um rei enlutado, que havia perdido seu único filho. O monarca ficou tão satisfeito que quis recompensá-lo. O sacerdote pediu como recompensa apenas um grão de arroz na primeira casa do tabuleiro, dois na segunda, quatro na terceira e assim sucessivamente, dobrando até a 64ª casa. Quando os cálculos foram feitos, descobriu-se que não havia arroz suficiente em toda a Terra para atender ao pedido — um exemplo clássico de crescimento exponencial.
“Além da diversão, o xadrez estimula o raciocínio lógico, a contagem, o pensamento estratégico, o plano cartesiano e até a compreensão da exponenciação”, destaca Ribeiro.
A lenda da mancala
Mancala é uma família de jogos africanos que utiliza sementes dispostas em um tabuleiro. “Uma das lendas diz que jogar mancala era uma forma de garantir boas colheitas, pois as sementes movimentadas representavam pedido de fartura aos espíritos. Outra versão fala de um casal que resolveu se casar para passar a vida jogando”, compartilha Ribeiro.
“É um jogo que desenvolve o raciocínio lógico, a contagem, as quatro operações básicas e até progressões aritméticas. Também resgata uma tradição africana que foi deixada de lado pelos registros históricos, que priorizaram o Oriente Médio e a Europa”, finaliza Ribeiro.
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