A colonialidade se manifesta no ensino da filosofia por meio da ideia de que somente a Europa produziu obras e pensamento filosófico, ou de que a filosofia ‘nasceu’ na Grécia, como aponta o professor da pós-graduação em filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) José Benedito de Almeida Júnior.

“Não faz sentido afirmar que a filosofia nasceu em determinado lugar porque o pensamento filosófico é uma ação humana e não privilégio de uma determinada cultura. Não nos perguntamos, por exemplo, qual povo inventou a música ou a agricultura”, descreve.

“Todas as sociedades produzem arte, formas econômicas, interação com o espaço, linguagem e também pensamento filosófico, que é a reflexão sobre os fenômenos da vida humana. Todas criam formas de existência no mundo, materiais, sentimentais e pensamentos”, explica.

Pluralidade de visões

Para Júnior, é importante desconstruir com os alunos a ideia de que estudar filosofia significa estudar filosofia europeia.

“Geralmente, outras produções filosóficas são desqualificadas com base em argumentos como ‘é religião’, ‘é pensamento regional’, ‘é filosofia popular ou oral’ etc.”, ilustra.

Isso não significa, contudo, deslegitimar a importância da filosofia grega na consolidação desse campo do saber. “A abordagem decolonial nos convida a ampliar nosso entendimento sobre a filosofia e a valorizar as contribuições de diferentes culturas ao longo da história, compreendendo o legado das cultural indígenas, africanas, asiáticas, além da europeia”, contrapõe o mestre em filosofia pela Universidade Federal do ABC (Ufabc) e professor da rede pública de São Paulo (SP) Fabiano Bitencourt Monge.

Além da perspectiva branca e eurocêntrica, Monge lembra que as formações e os cursos de licenciatura também valorizam uma perspectiva que é masculina e heterossexual.

“Essa narrativa é dominante nas universidades, nos materiais didáticos e nos livros de história da filosofia, frequentemente elaborados por historiadores brancos, latinos e europeus. Dessa forma, o ensino de filosofia é influenciado por uma perspectiva excludente, sem pluralidade de saberes e visões”, contextualiza.

Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante da Cátedra Unesco para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura, Yasmim Pontes lembra que a filosofia foi associada a figuras masculinas devido à exclusão de mulheres dos espaços de produção e transmissão do conhecimento, como mosteiros, academias e universidades, e de seu confinamento na esfera doméstica.

“Para completar, o processo de construção do cânone filosófico foi conduzido predominantemente por homens, que selecionaram, transmitiram e valorizaram as obras de seus pares, ignorando ou apagando as produções femininas”, reforça.

Para Monge, é tarefa do professor questionar visões hegemônicas e abrir espaço para diferentes vozes e saberes nas aulas. “Isso ajuda a criar uma formação mais ampla e enriquecedora para estudantes”, opina.

A seguir, confira cinco formas de apresentar contribuições filosóficas não europeias, femininas e de grupos que foram marginalizados nas aulas de filosofia da educação básica.

1) A filosofia grega é apenas um dos muitos pensamentos filosóficos

“A filosofia que nasceu na Grécia é a filosofia grega, e não ‘a filosofia’, conforme uma mentalidade colonizada nos faz crer”, aponta Júnior.

Ainda assim, vale apontar que o pensamento filosófico grego é rico e diversificado. “Destacamos sempre os filósofos da natureza, chamados incorretamente de pré-socráticos; a filosofia do trio Sócrates, Platão e Aristóteles e a riquíssima filosofia helenística, com suas escolas, ceticismo, estoicismo, epicurismo e outras”, adiciona.

2) Destaque a influência do Egito na filosofia

Júnior explica que houve influência da cultura egípcia sobre a grega em campos como agricultura, navegação, geometria, astronomia e também filosofia. “Subestimada, a filosofia egípcia pode ser vista como precursora da filosofia grega, com uma tradição de pensamento que se estende por mais de dois mil anos antes de pensadores como Tales, Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles. Pensadores como Imhotep, Ptahotep, Kagemni, Amenemope e Akhenaten abordavam temas como a moralidade, a ordem cósmica, a sabedoria e o papel da razão humana”, aponta Monge.

“A filosofia africana não apenas antecede, mas dialoga com o pensamento grego, especialmente no campo das questões éticas, políticas ou temas da metafísica”, complementa.

Para os professores, Junior indica a obra “Os filósofos egípcios, vozes ancestrais africana: de Imhotep a Akhenaten”, de Molefi Kete Asante. O livro destaca 11 filósofos africanos como Ptahhotep, Kagemni, Amenhotep, Amenemhat e Akhenaten.

Já Monge recomenda a obra “O legado roubado”, de George James, que argumenta que muitos aspectos da filosofia grega foram adaptados do pensamento egípcio.

“Há ainda o trabalho de José Nunes Carreira, em “Filosofia antes dos gregos”, e os textos disponíveis no site de Filosofia Africana”, complementa.

Segundo Monge, é importante destacar com a turma que os filósofos egípcios antigos enfrentavam grandes dificuldades para escrever, já que usavam papiro e pedras. “Eles condensavam seus pensamentos em máximas, expressando de forma concisa e objetiva a profundidade de seus raciocínios”, ressalta.

3) Traga exemplos não eurocêntricos ao ilustrar cada área da filosofia

Júnior indica apresentar visões não europeias ao abordar temas da filosofia, como ótica, estética, metafísica, filosofia política, entre outras.

“Ao tratar de filosofia política, abra espaço para o pensamento político chinês (‘A arte da guerra’, de Sun Tzu); africano (‘Moçambique: das independências à liberdade’, de Severino Ngoenha); do feminismo negro (‘Dispositivo de racialidade’, de Sueli Carneiro) e da filosofia latino-americana (‘O bem viver’, de Alberto Acosta)”, lista Júnior.

“Sobre metafísica, inclua ‘Dao de jing’ (Tao Te Ching). Sobre racismo, é interessante a obra ‘Crítica da razão negra’, de Achille Mbembe. Sobre o feminismo negro, podemos destacar ‘Lugar de fala’, de Djamila Ribeiro. E, sobre filosofia indígena, ‘A vida não é útil’, de Ailton Krenak”, adiciona.

4) Apresente filósofas

“Abordar filósofas amplia a visão dos alunos sobre quem pode ser filósofo, incentivando a inclusão e o reconhecimento da diversidade no campo”, afirma Pontes.

Monge indica apresentar aos alunos filósofas gregas da Antiguidade, como Temistocleia, Teano, Dâmo, Arignote, Myla, Cleobulina, Diotima, Aspásia, Perictione I e Perictione II.

Pontes recomenda trazer para os alunos Hipátia de Alexandria (370–415 d.C.). “Nascida no Egito Romano, foi uma renomada filósofa neoplatônica, matemática e astrônoma. Ela que liderou a Escola de Alexandria, onde ensinava filosofia prática e contribuía para o desenvolvimento de teorias científicas. Suas contribuições incluem trabalhos sobre geometria e comentários sobre as obras de Ptolomeu e Diofanto”, indica.

Outra sugestão de Pontes é Nísia Floresta (1810–1885), educadora, escritora e pensadora brasileira, defensora da educação feminina e dos direitos de indígenas e escravizados. Para os professores, Pontes indica aproveitar o recurso digital “Story Maps” de Nísia Floresta (em inglês, mas que pode ser traduzido).

5) Amplie a lista de pensadores contemporâneos

Júnior e Monge indicam ampliar a lista de pensadores contemporâneos, incluindo aqueles que não tiveram formação filosófica, mas que contribuem com uma filosofia decolonial. Confira a lista:

  • Pensadoras negras: Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Grada Quilomba, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Carla Akotirene, Conceição Evaristo, Bell Hooks e Angela Davis
  •  Pensadores negros: Cheikh Anta Diop, Théophile Obenga, Molefe Kete Asante, Franz Fanon, Achille Mbembe, Renato Noguera e Eduardo de Oliveira.
  • Pensadores indígenas: Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Daniel Munduruku, Rigoberta Menchú, Manuel Piñeiro e Tarcila Rivera Zea
  • Pensadores latino-americanos: Silvia Rivera Cusicanqui, Aníbal Quijano e Enrique Dussel.
  • Pensadora indiana: Gayatri Spivak.

Veja mais:

7 planos de aula para debater o racismo e conhecer pensadores negros

Educação decolonial: confira possibilidades de abordagem em 11 disciplinas

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