Discutir o trabalho escravo na educação básica tem duas funções principais: a formação cidadã do aluno e também a prevenção dessa prática criminosa, conforme explica o analista do programa “Escravo Nem Pensar!”, da ONG Repórter Brasil, Rodrigo Teruel. “Os estudantes acessam noções de direitos, valores e forma de vida digna. Além disso, como todo munícipio, por menor que seja, possui uma escola pública, é possível divulgar as formas de aliciamento e como o trabalho escravo contemporâneo opera de modo capilarizado, alcançando territórios vulneráveis”, justifica.
“Previne tanto os estudantes — que entrarão no mercado de trabalho —, como a comunidade escolar quando tais informações chegam aos responsáveis e familiares”, contextualiza. Teruel indica trabalhar com os alunos quatros aspectos que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo, presentes no Artigo 149 do Código Penal.
“O primeiro deles é o trabalho forçado, com o trabalhador isolado geograficamente ou impedido de deixar o local por dívidas, violência, retenção de documentos ou promessa de pagamento apenas ao final da jornada”, descreve. A segunda característica é a jornada exaustiva, que coloca em risco a integridade física e a saúde do trabalhador.
Há ainda a fabricação de dívidas ilegais de transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho, todas voltadas para impedir que o trabalhador deixe o local. “Por fim, temos as condições degradantes no alojamento, alimentação, falta de assistência médica, saneamento básico e água potável”, relata.
Outro ponto é que trabalho análogo à escravidão difere da escravidão colonial e imperial, tema curricular de história na educação básica. “O trabalhador não é propriedade de outra pessoa, mas sujeito de direitos submetido a essa condição por período delimitado de tempo”, diferencia Teruel.
“O crime acontece não exclusivamente pelo componente racial, sendo hoje as vítimas pessoas em situação de vulnerabilidade econômica. Porém, pretos, pardos e indígenas são os mais presentes nesse grupo, assim como migrantes internos e internacionais”, acrescenta. Para completar, a escravidão contemporânea dialoga com outros temas, como tráfico de pessoas e violência de gênero.
Materiais de apoio
Em atividade desde 2004, o projeto ‘Escravo Nem Pensar!’ já atingiu 548 municípios de 12 estados e funciona com uma parceria junto às secretarias de educação, de assistência social de saúde via formação de profissionais. “No caso da educação, os técnicos pedagógicos são formados visando multiplicar tais informações com os diretores, professores, alunos das escolas e, por fim, na comunidade escolar”, explica.
O projeto foca especialmente regiões com atividades econômicas tradicionalmente vinculadas ao trabalho escravo contemporâneo, como agropecuária, carvoarias e indústria têxtil. “Encorajamos a escola a abordar o tema de maneira interdisciplinar. Por se tratar de um tema social, o professor pode, no dia a dia, relacionar conteúdos diversos das suas disciplinas”, explica Teruel.
“Ainda que à primeira vista pareça dialogar com as disciplinas de ciências humanas, estatísticas podem ser trabalhadas em matemática e as doenças que atingem tais trabalhadores nas aulas de biologia”, indica. Entre as atividades pedagógicas sugeridas pelo programa estão campanhas, criação de cartazes, panfletagem, maquetes, murais, podcasts, vídeos e teatro, abordando desde a conceituação do tema até as formas de aliciamento e de denunciar a prática.
Como apoio, o site do projeto disponibiliza materiais diversos, incluindo dois livros didáticos; animações; experiências de boas práticas reunidas em cadernos por estado, texto para ajudar na definição do crime, entre outros.
Estudo de caso
Professor de química e mestre pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Emanuel Lopes Dornelas teve vontade de abordar o tema da escravidão contemporânea pelo olhar da sua disciplina ao perceber que presenciou trabalhadores escravos na sua cidade natal, Santa Fé de Minas (MG). “A primeira vez que vi a minha cidade na televisão foi a cobertura de uma intervenção que resgatou pessoas em situação análoga à escravidão em carvoarias, muitas delas conhecidas da minha família”, relembra.
“Lembro de jogar bola com filhos de carvoeiros que ficavam alojados em casas de palhas sem me dar conta de que eram trabalhadores escravizados”, compartilha. Em sua dissertação, ele desenvolveu um material didático para ensino médio com foco no ciclo do carvão. “É um processo que envolve a queima de material orgânico e dialoga com conceitos de termoquímica, o que são as reações exotérmica e endotérmica e Lei de Hess”, indica.
O professor ainda sugere trabalhar o tema com a classe por meio de estudos de caso. “Pode ser uma reportagem sobre o assunto que ajudará não somente a abordar conteúdos curriculares como a caracterização desse trabalho escravo. Isso de forma mais atrativa aos estudantes”, recomenda. Outra orientação dele é mapear o que o estudante já sabe sobre o assunto. “Pode haver alunos que vivenciaram ou testemunharam esse crime”, destaca.