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O educador português José Pacheco, um dos criadores da Escola da Ponte, é um defensor da educação baseada em valores. “O professor não transmite o que diz, e, sim, aquilo que é, os valores que ele próprio adota, muitas vezes inconscientemente”, explica o entrevistado neste podcast.

De acordo com ele, o propósito de uma educação com base em valores é formar o caráter, e tem base no pensamento de Paulo Freire, de que a intenção e o gesto do educador têm de ser coerentes. E isso também se aplica na educação a distância.

“Toda aprendizagem acontece pelo exemplo, pela imitação. Mesmo dentro do ventre materno, a criança aprende o ritmo da fala escutando as conversas de fora. Então, esses projetos não contemplam apenas a cognição, mas também a dimensão da emoção, do afeto, da ética, da estética, da espiritualidade, numa educação integral a partir de valores”, resume Pacheco.

Autonomia, solidariedade e responsabilidade: valores que devem nortear a educação, para José Pacheco (crédito: creative commons)

Esse pensamento foi o que moveu a mudança de rumo na Escola da Ponte, que se tornou modelo de instituição pública e inspirou iniciativas parecidas, inclusive no Brasil. Na educação com base em valores, a aprendizagem não está localizada nem no docente nem no estudante, mas na relação entre eles.

“Ela não pode estar centrada no professor – na ‘ensinagem’ – nem só no aluno – na aprendizagem. Ela acontece na relação, na intersubjetividade, na solidariedade, na cooperação, na colaboração, nesses valores fundamentais do século XXI”.

Pacheco ressalta que as escolas que praticam a educação com base em valores podem fazer isso mesmo diante dos desafios advindos do isolamento social. “[…] Na internet, como dentro do prédio da escola ou em qualquer lugar, o jovem vai fazer a pesquisa. O professor não dá aula, ele acompanha esse processo e ajuda a avaliar e comparar diferentes informações, a sintetizar e comunicar, porque nós estamos no tempo do paradigma da comunicação”, conclui ele.

Veja também:
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Programa NET Educação – Há formas de mudar e construir uma escola democrática, diz José Pacheco

Transcrição do Áudio

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

José Pacheco:
Quando eu parto para um projeto com esses professores, eu pergunto ‘quais são os valores que comandam as vossas vidas?’ Porque vós não ides transmitir o que vós dizeis, ides transmitir aquilo que sois. Toda aprendizagem acontece pelo exemplo, pela imitação. Mesmo dentro do ventre materno, a criança aprende o ritmo da fala escutando a fala de fora. Então, esses projetos não contemplam apenas a cognição, contemplam a dimensão da emoção, do afeto, da ética, da estética, da espiritualidade, numa educação integral a partir de valores.

Meu nome é José Pacheco, fui professor durante 50 anos, mas me considero um aprendiz de utopias, e tento ajudar outros a melhorar a vida dos outros. Sou um educador.

Vinheta: “Instituto Claro – Educação”

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
José Pacheco é um dos idealizadores da educação com base em valores. Inspirado pela obra de Paulo Freire, em uma então pequena escola de Portugal, em meados da década de 1970, decidiu instituir práticas coerentes entre pensamento, palavra e ação.

Hoje essa escola é referência de educação pública e serve de modelo para experiências em outras partes do mundo.

O nome dela? Escola da Ponte.

O educador explica que o impulso para mudar veio quando era jovem e recebeu orientações para a aplicação de uma prova.

José Pacheco:
Aí eu me dei conta de que quando um professor aplica uma prova e fica na sala, ele fica na sala porque está no pressuposto de que aquelas crianças ou aqueles jovens ou adultos são potencialmente desonestos. O professor na sala, vigiando uma prova, não transmite o que diz, transmite aquilo que é, transmite valores. Transmite valores da mentira, da falsidade, transmite valores negativos.

Marcelo Abud:
Desapontado com a experiência, José Pacheco propôs que a educação passasse a ser centrada em valores como autonomia moral e intelectual do aluno.

José Pacheco:
Há 44 anos, quando eu senti que dando aula, não ensinava, que numa aula não se aprende nada, eu procurei outros caminhos. E por intuição, por amor à criança, por amor à infância, eu e mais duas pessoas, numa escola de muita gente, resolvemos ver quais eram os nossos valores, os valores que comandavam as nossas vidas. Os valores porque nós nos orientávamos ou norteávamos. E então descobrimos que tínhamos, os três, três valores comuns: a autonomia, a solidariedade e a responsabilidade. E então decidimos avançar com um projeto que concretizasse esses valores.

Música: “O futuro que me alcance” (Reynaldo Bessa)
“Vou como o pássaro voa / Vou como o barco flutua / Vou na popa / Vou de costas para a proa / Vou”

José Pacheco:
O professor não transmite o que diz, transmite aquilo que é, transmite os valores que ele próprio adota, muitas vezes inconscientemente. Então, quando nós pensamos em continuar dando aula, percebemos que numa aula não se desenvolve autonomia. Porque que nós tínhamos como valor fundamental a autonomia e dávamos aula desenvolvendo dependência? Era o contrário. Responsabilidade? Como é que nós poderíamos educar na responsabilidade, quando os professores eram obrigados a cumprir horários impostos, a assinar um ponto? Como é que nós poderíamos ser responsáveis, quando havia um controle e uma padronização tão grande da atividade docente? Como é que nós poderíamos ser solidários, se nós estávamos sozinhos na sala de aula? Éramos solidários com quem? Onde é que estava o trabalho de equipe? Nós estávamos a dar aula fazendo o contrário dos valores que tínhamos assumido.

A Escola da Ponte, é disso que estou a falar, resolveu mudar, para ser coerente com os valores que acreditávamos, porque a escola da “ensinagem” tinha outros valores que não têm nada a ver com os nossos.

Marcelo Abud:
Para o educador, a aprendizagem não está centrada nem no professor nem no aluno, mas na relação.

José Pacheco:
O centro da aprendizagem não pode estar centrado no professor – na “ensinagem” – mas também não é só centrada no aluno – na aprendizagem – a aprendizagem acontece na relação, na intersubjetividade, na solidariedade, na cooperação, na colaboração, nesses valores fundamentais do século 21. Então, os jovens aprendem aquilo que querem e que estão na Base Nacional Curricular Comum.

Música: Estudo Errado (Gabriel, o Pensador)
“Quero usar a mente / Pra ficar inteligente / Eu sei que ainda não sou gente grande / Mas eu já sou gente”

Marcelo Abud:
José Pacheco defende que, independentemente de a aula acontecer no ambiente escolar ou a distância, a educação é sempre baseada em valores.

José Pacheco:
As pessoas que estavam nesses projetos facilmente passaram para a internet. E continuam em contato com os seus jovens, que deixaram de ser alunos, ou não-iluminados, para ser o sujeito da aprendizagem, na dignidade da autoafirmação. Então, os professores, entram em contato com os seus jovens em horários que eles combinam, uns com os outros, e não um horário igual para todos – é um disparate. E os jovens, com os seus tutores, que é um mentor, um cuidador do jovem, a partir das necessidades, dos desejos e sonhos de cada jovem constrói currículo de subjetividade. Pergunta ao aluno ‘o que é que tu queres aprender agora? O que é que  tu queres fazer?’ E o aluno diz. E ao dizer, ele atribui sentido àquilo que faz, e o professor não vai fazer planejamento de aula para o aluno, o professor constrói planejamentos com os alunos, ensina-os a planejar, a saber gerir o tempo, a saber gerir o espaço, tudo aquilo que é recurso.

Música: Estudo Errado (Gabriel, o Pensador)
“Encare as crianças / Com mais seriedade / Pois na escola é onde formamos nossa personalidade”

José Pacheco:
E quando o jovem na internet, como dentro de um prédio, na escola, em qualquer lugar, o jovem vai fazer a pesquisa. O professor não dá aula, o professor acompanha essa pesquisa. Ajuda o aluno a fazer seleção de informação, a analisar criticamente a informação e o aluno desenvolve senso crítico, que é um valor fundamental, um dos grandes objetivos e competências do século 21. O professor ajuda a avaliar e comparar diferentes informações, a sintetizar e comunicar, porque nós estamos no tempo do paradigma da Comunicação.

Marcelo Abud:
Na educação com base em valores, outro aspecto importante é incluir a família e a comunidade nesse processo de aprendizagem.

José Pacheco:
Quer na escola prédio, quer na comunidade, quer na internet, ele não trabalha só a criança ou o jovem, ele trabalha com a comunidade, com a família, e desenvolve projetos de desenvolvimento sustentável dessa comunidade, a partir de necessidades, desejos, problemas dessa comunidade. O professor é indispensável. E ao fazer isso, ele transmite os valores da solidariedade, da responsabilidade, tudo isso que está na Base Nacional Curricular, mas que as “escolas da aula” não cumprem.

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
O propósito de uma educação com base em valores é formar o caráter. Segundo José Pacheco, isso só é possível se houver unidade entre pensamento, palavra e ação.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

 

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