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O conto “Seminário dos ratos”, de Lygia Fagundes Telles, é uma das novidades na lista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para o vestibular de 2022. Parte de livro de mesmo nome, o texto é, originalmente, uma alegoria ao regime ditatorial que imperava no Brasil quando foi lançado, em 1977.
“Nós estamos lendo esse conto para entender quem somos, o país em que vivemos, para olhar historicamente para reflexões que continuam, lamentavelmente, fazendo todo sentido pra nós hoje em dia”, afirma o professor de literatura do Anglo Vestibulares e mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo Mauricio Soares Filho, ouvido nesta edição do Livro Aberto.

Como nos demais contos da obra, “Seminário dos Ratos” tem como estilo o realismo fantástico. “A gente está falando de algumas narrativas em que traz algo que é estranho, que é diferente, que muitas vezes a gente fica em dúvida se poderia acontecer na vida real”, observa o professor.

Olhar de seu tempo

Em palestra realizada por Lygia Fagundes Telles em 2010, na Livraria da Vila, em São Paulo, a escritora resumiu o seu processo criativo: “Participante deste tempo, desta sociedade, eu procuro apresentar esta sociedade e este tempo envoltos na sedução do imaginário e da fantasia, mas sempre fiel a esse comportamento na vida real”.

No conto, o seminário reúne chefes de diversas nações para decidir sobre a situação dos ratos. Em vez de nomes, esses líderes são identificados apenas pelos cargos que exercem. Na fantasia, os ratos roem tudo o que encontram pela frente: comida, pessoas, roupas, móveis.

“A forma como esses personagens, conversando, vão nos apresentando a situação e vão se referindo um ao outro com alguma noção de hierarquia e sempre muito conectados com esses nomes oficiais, nos transmitem essa sensação de que estamos, de fato, numa grande reunião governamental, em que há um grande problema a ser resolvido, no qual se deseja que a imprensa esteja afastada, para não atrapalhar qualquer tipo de negociação”, resume Soares.

Questão de prova

No áudio, o entrevistado traz aspectos do conto que acredita que possam ser levantados no vestibular. Entre eles está o título, que tem um aspecto propositalmente ambíguo. “Eu acho que essa é uma grande questão: afinal de contas, quem são os ratos do Seminário dos Ratos? Por que a utilização dessa preposição “dos” faz com que a gente pense: esse seminário é feito pelos ratos? Esse seminário é sobre os ratos? Os ratos dominam esse seminário ou eles são o alvo dele?”. As respostas podem ser deduzidas do conto de dez páginas que, segundo o professor, é muito acessível e imprescindível para o vestibulando.

Veja mais:
Plano de aula sobre o conto “Seminário dos Ratos”

Edição especial do podcast do Instituto Claro com Lygia Fagundes Telles

Transcrição do Áudio

Música: “O futuro que me alcance”, base instrumental, de Reynaldo Bessa , de fundo

Mauricio Soares Filho:
Nós estamos lendo esse conto – “Seminário dos Ratos” – pra entender quem somos, o País que vivemos, pra olhar historicamente pra reflexões que continuam, lamentavelmente, fazendo todo sentido pra nós hoje em dia. E acho que isso traz consciência, traz informação. Taí o grande poder da literatura. Nós não estamos lendo esse conto para que alguém nos conte uma historinha pra gente se divertir.
Meu nome é Mauricio Soares Filho, professor de literatura, trabalho diretamente com essa preparação para vestibulares, no curso Anglo, aqui em São Paulo, há aproximadamente 30 anos.

Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Os bons vestibulares convidam jovens à reflexão. Essa é a análise do mestre em literatura brasileira pela USP, Mauricio Soares Filho, que neste Livro Aberto fala sobre o conto “Seminário dos Ratos”, de Lygia Fagundes Telles.

Mauricio Soares Filho:
Especificamente na década de 70, como acontecia em outros países também, nós temos o desenvolvimento muito interessante do chamado realismo fantástico. No realismo fantástico, a gente está falando de algumas narrativas em que traz algo que é estranho, que é diferente, que muitas vezes a gente fica em dúvida se poderia acontecer na vida real.

Marcelo Abud:
Em áudio gravado em 2010 na Livraria da Vila, em São Paulo, Lygia confirma que a obra dela busca o engajamento.

Lygia Fagundes Telles:
Participante deste tempo, desta sociedade, eu procuro apresentar esse tempo, essa sociedade e esse tempo envoltos na sedução do imaginário e da fantasia, mas sempre fiel a esse comportamento na vida real.

Mauricio Soares Filho:
E é exatamente isso que acontece nessa história da Lygia. A gente tem a questão dos ratos como algo que é plausível e ao mesmo tempo exagerada, transformada aqui numa alegoria, trazendo muitos símbolos contidos numa história curtíssima de 10 páginas. E acho que é bem importante pra quem tá ouvindo esse podcast, a informação de que a Unicamp pede pra sua prova de 2022, apenas o conto e não o livro todo, muito acessível. Essa leitura de fato não tem porque não acontecer.

Música: “Ode aos Ratos” (Chico Buarque / Edu Lobo), com Edu Lobo
Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão

Mauricio Soares:
Então a forma como esses personagens, conversando, vão nos apresentando a situação e vão se referindo um ao outro com alguma noção de hierarquia e sempre muito conectados com esses nomes oficiais, nos transmitem essa sensação de que estamos, de fato, numa grande reunião governamental, em que há um grande problema a ser resolvido, no qual se deseja que a imprensa esteja afastada, pra não atrapalhar qualquer tipo de negociação. Evento para o qual foram convidados alguns integrantes de uma comissão americana. E por meio da atitude de cada um deles é que vamos entendendo quem são os ratos.

Marcelo Abud:
O professor lê um trecho do conto, em que o Chefe de Relações Públicas conversa com o Secretário do Bem-Estar Público e Privado.

Som de página de livros sendo virada

Mauricio Soares Filho:
Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da Presidência da RATESP vai funcionar, isso de deixarmos os jornalistas longe. Tenho minhas dúvidas.
— Vossa Excelência vai me perdoar, mas penso que a cúpula se valoriza ficando assim inacessível. Aliás, é sabido que uma certa distância, um certo mistério excita mais do que o contato diário com os meios de comunicação.
Nossa única fonte vai soltando notícias discretas, influindo sem alarde até o encerramento, quando abriremos as baterias! Não é uma boa tática?

Som de página de livro sendo virada

Mauricio Soares Filho:
Eu fico espantado com a atualidade desse tratamento dado à imprensa. Porque acho importante que a gente consiga detectar na obra esses temas. Fala-se do quê? Quer dizer, fala-se da relação governo-imprensa; fala-se da relação oposição-situação; direita-esquerda, e de uma praga que assola a população, principalmente o povo, considerado uma abstração pro governo. Veja se essa não é a situação que vivemos hoje? O povo é apenas uma abstração, da qual a gente lembra quando a gente está no meio de uma calamidade.

Música: O Tempo não para (Cazuza), com Elza Soares
A tua piscina ‘tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para

Mauricio Soares Filho:
Eu acho que essa é uma grande questão: afinal de contas, quem são os ratos do Seminário dos Ratos? Porque a utilização dessa preposição “dos” faz com que a gente pense: esse seminário é feito pelos ratos? Esse seminário é sobre os ratos? Os ratos dominam esse seminário ou eles são o alvo dele?

Som de página sendo virada

Marcelo Abud:
Mauricio Soares aponta aspectos do conto que podem ser abordados em questões do vestibular.

Mauricio Soares Filho:
Então eu destacaria essa ambiguidade do título como algo a ser observado; o fato das personagens não terem nomes próprios; essa dúvida a respeito de, afinal de contas, quem são essas pessoas que estão lá?
Tem mais uma coisa pra comentar que é a epígrafe. Poderia ser um aspecto explorado pela Unicamp na prova:
“Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos
e começaram a roer o edifício”
Então esse é um trechinho de um poema chamado Edifício Explendor, que está no livro “José”, que o Drummond publicou na década de 40; e de certa forma antecipa um pouquinho o final: ‘exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício’. Esses ratos estão então exclamando, assumindo o papel de personagens pensantes, falantes, e analisam a complexidade do século 20. E claro, as ditaduras militares espalhadas aí pela América Latina; isso sem falar nas guerras mundiais, em todo esse cenário de destruição, morte, de ambição, que revela o homem cada vez mais afoito pelo poder, independente do que isso possa causar. Pode ser uma das explorações da prova, entende? ‘O que que é epígrafe? Qual a função da epígrafe? Antecipar aspectos do enredo, instaurar uma atmosfera que será encontrada no conto. E qual é a atmosfera? A de um mundo em ruínas, a de um País sendo roído por ratos por todos por todos os lados, sejam eles situação ou oposição, o que sobram são apenas ratos.

Música: “Bichos escrotos II” (Zeca Baleiro)
Só ratos, só ratos
Esses diabos querem acabar com tudo
Com a civilidade
Com a nossa alegria

Mauricio Soares Filho:
São personagens que o tempo inteiro têm essa atitude ambígua, quando falam, por exemplo, sobre a imprensa, quando se referem ao povo como uma simples abstração…

Som de página de livro sendo virada

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
O realismo fantástico de Lygia Fagundes Telles se resume em um pensamento do escritor e filósofo romeno Emil Cioran, citado por ela própria no áudio da palestra que fez em 2010.

Lygia Fagundes Telles:
“Não quero a sabedoria da desilusão, mas quero a sabedoria da ilusão, que é o sonho”.

Marcelo Abud:
Outros trechos dessa conversa você encontra no episódio especial em homenagem a Lygia Fagundes Telles. O link está no texto que acompanha esse áudio. Por lá, tem também um plano de aula sobre o conto “Seminário dos Ratos”.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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