Alguns afirmam, com certa sagacidade, que Cervantes foi o primeiro crítico da mídia, pois são os romances de cavalaria que levam Dom Quixote a se imaginar um herói e combater moinhos de vento, no clássico publicado no início do século XVII. Lembrei disso ao ler uma passagem do livro “Lost in a good game: why we play video games and what they can do for us” (Reino Unido: Icon Books, 2019), de Pete Etchells, psicólogo e ex-editor do blog de ciência do jornal “The Guardian”, onde o autor diz que: “Algumas pessoas se perdem num bom livro. Eu me perco num bom jogo” (cap. 1, para. 6). É que “se perder” pode remeter tanto à ideia de uma forte concentração prazerosa quanto à da perda da razão, que leve alguém a cometer desatinos. Assim como os romances de cavalaria, os videogames são acusados, frequentemente, de levarem seus usuários à loucura.
O livro de Etchells não é, todavia, uma peça de acusação. A partir de uma escrita bem informada, o autor procura discutir o que torna os videogames tão atrativos e populares, bem como os efeitos que eles têm na sociedade e nos indivíduos. Daí, o interesse do autor em problematizar uma série de mitos que envolvem os videogames.
Num curto artigo para o “The Guardian” (Five damaging myths about video games – let’s shoot ‘em up, 6 abr. 2019), alguns desses mitos já são explorados (no livro, porém, há bem mais detalhes). Em primeiro lugar, há a questão da violência que, por ter sido tema da coluna “É mais fácil culpar o videogame”, não abordarei aqui. Em seguida, o autor discute o mito do caráter de vício que o jogo pode assumir. Etchells discorda do entendimento que a Organização Mundial da Saúde adotou da existência do vício nos videogames. Segundo ele, as evidências científicas dessa patologia são pouco acuradas e significativas, merecendo mais pesquisas antes que se possa afirmar a existência real de um distúrbio desse tipo.
O autor fala também do mito do isolamento social que os games poderiam estimular, notando que essa perspectiva decorre de “um mal-entendido sobre o que os videogames realmente são. Os jogos, desde a sua criação, foram projetados como experiências sociais”. Nessa linha, ele cita o caso de um jogador norueguês, cujos pais descobriram, somente após a morte do filho, o importante papel social que o videogame tinha na vida dele. Vale a pena ler a tocante reportagem que relata o caso: A impressionante vida secreta em World of Warcraft de meu filho gamer com doença degenerativa (“BBC News Brasil”, 26 mar. 2019).
Outro mito corrente é que os videogames são uma perda de tempo sem sentido. Aqui, o autor comenta a dificuldade que muitos (não jogadores, sobretudo, acrescentaria) têm em compreender os videogames como uma mídia expressiva com características singulares e poderosas. Como a romancista e designer de jogos Naomi Alderman, citada no artigo, observa, somente os jogos dão à audiência o poder de agência, fazendo com que o jogador sinta emoções (orgulho, tristeza, alegria, etc.) derivadas de suas ações. Os jogos dão a possibilidade de nos tornarmos efetivamente “heróis”, realizando aventuras extraordinárias, em vez de somente lê-las, como num romance; ou vê-las num filme, o que representa uma experiência estética e midiática única. Essa característica explica, em muito, a popularidade e atratividade dos videogames.
Por fim, há o mito de que os jogos são só e puramente um entretenimento. Em primeiro lugar, isso pode ser criticado pelo fato de que os jogos são, em si mesmos, resultados do desenvolvimento científico e, reversamente, têm sido usados como meios para a coleta de dados para estudos. A última característica é ilustrada pelo caso do jogo “Sea Hero Quest”, que é usado por pesquisadores britânicos como fonte de coleta de dados para o estudo do mal de Alzheimer, entre outras demências que afetam a capacidades espaciais de jogadores.
Nesse aspecto, da “seriedade” que deriva dos fins de entretenimento dos jogos, o autor poderia ter discutido dimensões educativas. Nessa perspectiva, as propostas são variadas, incluindo as reflexões que procuram, a partir da análise dos princípios de design dos jogos, tirar insights pedagógicos que possam ser usados em contextos específicos de aprendizagem (um autor como o James Paul Gee, é um exemplo disso). Há ainda a ideia do uso de jogos digitais em contextos formais de educação, inspirando práticas inovadoras e afeitas aos jovens, num modelo de ensino mais centrado no aprendiz (como propõe Marc Prensky), bem como o uso de jogos de entretenimento em situações formais de ensino. É este o caso dos professores que usam jogos como “The Sims” ou “Spore” como ambientes de simulação ou para ensino de determinados conceitos, como o de evolução, no caso do segundo jogo.
Entender e desmistificar os mitos negativos sobre os videogames é um primeiro passo para uma avaliação mais equilibrada dos jogos – e, quem sabe, seu uso educativo. Existem, é claro, pontos mais negativos sobre eles (em coluna no futuro, irei abordá-los), que também merecem atenção. No entanto, como o véu do preconceito sobre os jogos é maior do que a aceitação, fora dos círculos de jogadores, convém que os educadores tenham abertura ao conhecimento, deixando de lado ideias errôneas preconcebidas.
Crédito da imagem: Kerkez – iStock
O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.
Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.