Quando os inimigos das evidências e do conhecimento científico ocupam altos cargos públicos é preciso se preocupar. A tendência é que defendam soluções simples (e erradas) para questões complexas. É assim em qualquer lugar do mundo e, conforme políticos poderosos agem desse modo, atuam de forma deseducativa, pois chancelam o mesmo comportamento na população.

Um exemplo disso é o modo como se atribui responsabilidade a massacres com armas de fogo. De quem é a culpa dessas tragédias: da disseminação descontrolada de armamentos, da falta de perspectivas e de auxílio psicológico a certos jovens e adultos? Para Donald Trump, presidente da nação mais poderosa do planeta, ao que parece, não. Antes mesmo de ser eleito, ele já culpara os videogames pela violência nos Estados Unidos, declarando que os jogos estavam “criando monstros”. Mais recentemente, no início do mês passado, após dois incidentes com atiradores solitários nos Estados Unidos, Trump voltou a atacar os videogames, dizendo que eles eram um dos principais fatores de uma cultura de violência. Além disso, dias depois, fez uma reunião privada com representantes da indústria de videogames e ativistas contra os jogos.

O detalhe pitoresco é que a Casa Branca elaborou um vídeo com cenas violentas de games, como material para o encontro – e esse vídeo se tornou viral. Hoje possui mais de 1,5 milhão de visualizações no YouTube e mais de mil e quinhentos comentários, apesar de estar no modo privado da plataforma. A popularidade se dá, provavelmente, pelos motivos errados (para a Casa Branca). O vídeo possui 98 mil “não gostei” e, nos comentários, muitas pessoas criticam Trump ou então indagam, ironicamente, por que estão faltando no vídeo cenas de determinado jogo. De fato, o conteúdo é forte, mas, se você tiver curiosidade e o estômago aguentar, pode assistir o vídeo “Violence in Video Games”.

No Brasil, há também a tentativa de culpabilizar os games pela violência. Logo após o episódio ocorrido em março deste ano na cidade paulista de Suzano, no qual dois jovens (fãs de jogos) mataram oito pessoas, um deputado federal governista apresentou o Projeto de Lei n. 1577/2019, que “criminaliza o desenvolvimento, a importação, a venda, a cessão, o empréstimo, a disponibilização ou o aluguel de aplicativos ou jogos eletrônicos com conteúdo que incite a violência e dá outras providências”. As justificativas falam de Suzano e envolvem a ideia de que os jogos “incitam” a violência.

O que há de errado nisso é que existe, hoje, relativo consenso científico sobre não existir relação entre os games e a violência. Os jogos não causam massacres. É possível lamentar o mau gosto e a violência de muitos deles, e um precavido controle da família dos jogadores quanto ao consumo dos jogos (e outros produtos midiáticos) é bem-vindo; porém, as medidas para conter a violência através da mera proibição dos jogos são uma perda de tempo e de recursos públicos. A discussão, em vez disso, poderia avançar para causas mais prováveis e significativas de tragédias (voltarei a esse ponto no final).

Antes, vale a pena dar fontes da discussão. Serei sucinto (a literatura sobre o tema é vasta), indicando apenas três, mas espero que os interessados possam consultar esse material e julgarem por si mesmos a questão. As duas primeiras são em inglês, começando com o relatório “Essential Facts About Video Games and Violence” (mar. 2019), produzido pela estadunidense Entertainment Software Association, e que mostra dados interessantes, entre eles, o de que, embora as vendas de videogames nos EUA subam, o índice de crimes violentos tem diminuído, ao longo do tempo. Além disso, traz indicações de pesquisas científicas qualificadas sobre o tema. Outra indicação é a reportagem “Video-Game Violence Is Now a Partisan Issue” (9 ago. 2019), do “The Atlantic”, feita pelo teórico de jogos Ian Bogost. Nela, o autor apresenta a longa história de controvérsias envolvendo a associação entre videogames e violência nos Estados Unidos, apontando o estado atual da questão, em termos sociais e científicos. Por fim, vale a pena ler a postagem “Games violentos estimulam violência? A ciência diz que não” (14 mar. 2019), do blog do jornalista Chandy Teixeira, que fala de uma interessante pesquisa recente sobre games e violência.

Finalmente, a respeito de possíveis causas mais concretas de violência, particularmente a juvenil, lembrarei a conclusão do estudo do pesquisador, bastante atuante na temática jogos e violência, Christopher Ferguson (“Video games and youth violence: a prospective analysis in adolescents”, “Journal of Youth and Adolescence”, 2010). O autor afirma não ter encontrado, em sua pesquisa empírica, evidências para apoiar o relacionamento entre agressões na vida real e o uso de videogames. Porém, Ferguson observa que os sintomas depressivos se destacam como fontes particularmente fortes de violência e agressão juvenil, e, portanto, “os níveis atuais de depressão podem ser uma variável-chave de interesse na prevenção de agressões graves na juventude” (p. 389).

Conforme reportagens da época do crime de Suzano, um dos jovens abandonou a escola por não suportar os comentários depreciativos sobre suas espinhas e estaria deprimido pela morte da avó. A escola tinha psicólogo ou outro profissional de saúde mental que pudesse ajudá-lo? Provavelmente, não; mas é mais fácil culpar o videogame.

Crédito da imagem: print do vídeo “President Trump’s Violent Game”, do canal The Late Show with Stephen Colbert

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Richard Romancini

Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.

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