O golpe de 1964 e a ditadura militar (1964-1985) ainda aparecem pouco em sala de aula. A atuação recente da Comissão da Verdade é uma boa oportunidade para que esse passado que ainda não passou seja incorporado com mais intensidade ao ensino de História. A atualidade do tema se impõe, mas há também uma necessidade política. Alguns estudos sugerem que, em comparação com jovens argentinos e uruguaios, os brasileiros são os que menos têm interesse sobre o passado militar e os que têm menores rejeições a “opções militaristas”. Eles também são os mais despolitizados e os que menos defendem valores democráticos. Os dados servem de alerta.
 
De 1964 até os dias de hoje, a historiografia e o ensino mudaram em vários aspectos, assim como os olhares sobre o golpe. As várias explicações nos livros didáticos – às vezes de um mesmo autor em obras diferentes – mostram que, na escrita histórica do tempo presente, muitas vezes há certa autonomia dos autores em relação à produção historiográfica. Por isso, uma forma interessante de trabalhar com os livros didáticos de História é entendê-los como intérpretes doadores de sentidos ao “acontecimento traumático” golpe de 1964.
 
Em uma ampla análise de quase 80 livros didáticos produzidos entre 1973 e 2000, nota-se que as abordagens adotadas muitas vezes se concentram nas figuras de Jânio Quadros e João Goulart, individualizando e psicologizando o acontecimento, que é visto como fruto apenas das contingências imediatas. Percebe-se boa dose de determinismo e a predominância do tempo curto sobre todas as outras possibilidades de explicação. O golpe a ser dado era inevitável e seria bem-sucedido. Possibilidades disponíveis, mas perdidas, são ignoradas, como se outras alternativas fossem impossíveis dentro das limitações da conjuntura histórica do pré-golpe.
 
A presença de civis e o papel desempenhado pelos militares na tomada do poder não costumam ser problematizados.
 
Na maioria dos livros analisados, o ex-presidente Jânio Quadros é constantemente retratado como um homem carismático, mas imprevisível. A renúncia de Jânio, em 1961, foi apontada como uma das causas centrais do golpe militar em boa parte dos livros dos anos 1970 e 1980, mas ela praticamente desaparece nos livros mais recentes. Essa mudança se dá, provavelmente, pelas referências historiográficas que servem de apoio aos autores dos livros. Naquelas décadas, havia a influência do trabalho de Thomas Skidmore (Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, de 1969), que enfatiza a crise de 1961, ao passo que nos livros produzidos após a década de 1980 houve a influência da reflexão de René Dreifuss (1964. Aconquista do Estado, de 1981), que minimiza essa crise. É interessante notar que o trabalho de Argelina Figueiredo (Democracia ou Reformas?, de 1993), que revaloriza a crise de 1961, é mencionado em apenas um dos livros analisados.
 
Alguns deles destacam que as “agitações políticas” durante o governo de Goulart teriam desencadeado o golpe de 1964, como a Revolta dos Marinheiros, em 25 de março do mesmo ano. Já segundo outras obras, a “incapacidade do governo de João Goulart” foi uma das principais causas do golpe militar e civil. A referida incapacidade diz respeito às escolhas feitas por ele e à sua suposta covardia, demonstrada na sua fuga do Brasil no momento em que os militares tomavam o poder. Na maioria dos livros didáticos das décadas de 1970 e 1980, os golpistas não seriam apontados como causa fundamental do golpe. Neles, as origens do golpe estão ligadas, em geral, a crises econômicas e à inabilidade de João Goulart no governo.
 
Nos livros das décadas seguintes, essas duas origens não mais aparecem. Porém, surgem quatro causas novas: choques entre grupos de esquerda e grupos de direita, fatos que ocorreram em março de 1964, política desenvolvimentista da década de 1950 e que o golpe de 64 teria sido um adiamento do golpe planejado em 1961.
 
Em geral, a inevitabilidade do golpe está presente.  E isso tanto nos livros que enfatizam a ideia de que 1964 foi fruto de uma conspiração como naqueles em que o golpe é visto como uma ação preventiva da direita contra uma futura ação da esquerda revolucionária. Um aspecto factual, por exemplo, merece ser problematizado em sala de aula. Trata-se da vacância da Presidência. Muitos livros atribuem a suposta fuga de João Goulart para o Uruguai como a razão da decretação da vacância pelo presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. Essa “versão” é desmentida pela realidade e legitima o golpe. Na verdade, a vacância anunciada em 1º de abril de 1964 foi inconstitucional, na medida em que João Goulart permaneceu no país até o dia 4 de abril.
 
É importante perceber que os livros didáticos não são uma mera transposição de um saber acadêmico para um saber escolar. Os autores dos livros didáticos  desempenham a função de conservação e recriação da memória ao escreverem e reescreverem continuamente a história de acontecimentos como a ditadura militar. Eles se tornaram os guardiões e construtores do saber escolar e da memória histórica. Seria necessário pensar a História para além da fascinação pela origem. Afinal, a contradição que os historiadores das origens pretendem superar é, em certa medida, insuperável, pois, após uma longa busca das causas “profundas” e “imediatas”, eles retornam sempre ao caráter contingente do começo de um evento. Assim, além da ocorrência do golpe, outra questão de fundo a ser pensada é a seguinte: por que razões o golpe de 1964 foi duradouro e bem-sucedido do ponto de vista daqueles que foram vitoriosos?
 
Uma boa compreensão do contexto tende a ser mais interessante do que a busca das “causas”. A hierarquização de “causas” tem uma eficácia didática, mas não necessariamente explicativa. Assim, é preciso criar situações em que os alunos possam relativizar a importância de uma causa de curta, média e longa duração em detrimento de outras. Algumas atividades podem ser estimulantes, como pedir que cada grupo eleja e defenda uma “causa” como determinante, ou confrontar o texto do livro didático com a Wikipédia. O que pode levar, inclusive, a uma tentativa de reformulação do texto da enciclopédia digital.
 
Para esse tipo de atividade, um importante auxílio aos professores pode ser obtido em sites e blogs sobre o tema. O blog brasilrecente.com, por exemplo,traz respostas complexas para questões como: por que Goulart não resistiu? Goulart poderia tornar o Brasil socialista? Ao refletir sobre essas e outras questões, é preciso fazer a difícil articulação entre o passado e o presente. Assim, pode ser interessante questionar o que permanece da ditadura na sociedade brasileira. Construir comparações ou analogias, por meio da análise de diferenças e semelhanças entre, por exemplo, questões relativas à tortura e à violência de ontem e de hoje pode ser um importante instrumento de politização e desenvolvimento do pensamento histórico. Trata-se de refletir continuamente sobre o que se passou antes e depois que a experiência democrática vivida pelo Brasil desde 1945 foi lamentavelmente interrompida no ano de 1964. O livro didático é, assim, apenas mais um instrumento desse processo.
 
Um uso bom e criativo do livro didático pressupõe que o professor trabalhe com um conceito de tempo mais heterogêneo e plural, e continuamente se interrogue sobre a elaboração do livro como um todo. Em outras palavras, é importante questionar o que fabrica o autor de livros didáticos quando escreve a História. Esse tipo de postura crítica e ativa contribui para manter presente o acontecimento “golpe de 1964”, a fim de guardá-lo como algo a ser pensado, impedindo sua dispersão no tempo e no esquecimento.
 

Exibição de "material subversivo" no mês
seguinte ao golpe (Crédito: Arquivo Nacional
/Fundo Correio da Manha)


 
 
Saiba Mais – Bibliografia
CERRI, Luís Fernando. “O estudo empírico da consciência histórica entre jovens do Brasil, Argentina e Uruguai”. In: FONSECA, Selva Guimarães; GATTI JR., Décio. (orgs.). Perspectivas do Ensino de História: ensino, cidadania e consciência histórica, vol. 1.  Uberlândia: Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2011.
 
FICO, Carlos. “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar”. In: Revista Brasileira de História,2004.  
 
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

Saiba Mais – Internet
PEREIRA, Mateus. H. F.; PEREIRA, Andreza C. I.  Os sentidos do golpe de 1964 nos livros didáticos de História (1970-2000): entre continuidades e descontinuidades. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. www.historia.uff.br/tempo/site/wp-content/uploads/2011/04/v15n30a09.pdf  

*O artido foi originalmente publicado na Revista de História

 

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