Leonardo Gleison e sua esposa são cegos e pais de um bebê vidente. Durante o isolamento social, precisaram comprar roupas novas para a criança pela internet.  “Sem ajuda em casa e com sites que não possuíam descrição de imagens, compramos sem saber direito o tecido, o tamanho ou a cor das peças”, relembra o técnico de tecnologia assistiva.

O professor e doutor em história, Valter Lenine Fernandes, é surdo e enfrentou dificuldades em transações bancárias e compras online para a sua mãe idosa. “Muitos supermercados ligam para confirmar os dados. Foi difícil manter os serviços”, lamenta.

Já o analista de marketing da Hand Talk, Alexandre Dantas Ohkawa, notou a falta de intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras), legendas e audiodescrição em chats de plano de saúde e atendimentos médicos feitos a distância por vídeo.

Os três relatos ilustram como a falta de acessibilidade na internet ficou ainda mais evidente durante a pandemia do novo coronavírus (covid-19). Segundo estudo do Movimento Web para Todos, menos de 1% dos sites brasileiros são inclusivos.

Valter Lenine Fernandes é surdo e enfrentou dificuldades para fazer transações bancárias e compras online (crédito: arquivo pessoal)

“O artigo 63 da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) prevê a acessibilidade digital, mas essa é descumprida porque não há monitoramento”, explica a idealizadora do movimento, Simone Freire.

“O isolamento da pessoa com deficiência (PCD) é ainda maior nesses momentos em que a internet deixa de ser algo complementar para se tornar um item essencial”, afirma o presidente da Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB), Beto Pereira.

Beto Pereira, com o microfone na mão, em um evento da ONCB (crédito: arquivo pessoal)

Direito à informação

Para ser inclusivo, um site precisa atender a necessidade de diversos públicos, com interface com softwares de audiodescrição e tradução do texto para Libras, realizado por um avatar.

“Pessoas com dificuldades de movimento, como tetraplégicos, acessam a internet usando um palito de boca. Isso exige acessibilidade por ativação de voz ou pelo teclado”, acrescenta Freire.

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Surdos oralizados – pessoas que compreendem a língua portuguesa, conseguem se expressar verbalmente e fazer leitura labial – e usuários do português precisam de legendas em vídeos, enquanto os sinalizados  – que se comunicam prioritariamente pela língua de sinais – necessitam de intérpretes de Libras. Por sua vez, mais contraste nas cores de fundo e a parte escrita, letras grandes e botões sinalizados auxiliam a navegação de pessoas com baixa visão.

Os softwares de leitura, porém, encontram dificuldade para traduzir sites com excesso de propagandas e de informações em barras laterais e superior. “A informação principal fica no centro, dificultando alcançá-la”, resume Gleison, que prefere fazer compras pelo celular. “Como a tela é pequena, há menos informações desnecessárias”, relata.

Outro exemplo de site com layout inadequado são os portais de notícias. “Optei por me informar via Twitter. Na rede, os jornais trazem a manchete no tuíte e eu posso clicar naquela que me interessa”, revela o técnico.

Leonardo Gleison prefere fazer compras pelo celular, pela simplicidade dos sites em versão mobile (crédito: arquivo pessoal)

Legenda obrigatória e janela com intérprete de Libras também ajudaria a comunidade surda a se informar. “E quando há janelas, essas são minúsculas e você mal as enxerga”, lamenta Ohkawa.

Além do layout, também acontece de o conteúdo do site ser inacessível. “Texto rebuscado, em ordem indireta e com excesso de metáfora prejudica a leitura do software de Libras”, alerta Freire.

Risco à saúde

Gleison não encontrou plataformas ou aplicativos de supermercado e farmácia acessíveis na pandemia.  Aqueles que eram inclusivos, por sua vez, não atendiam seu bairro, que fica longe do centro de São Paulo (SP). Sem a possibilidade do delivery, ele foi obrigado a quebrar a quarentena e sair às ruas. “Ir ao mercado exige que uma pessoa me ajude a atravessar a rua, ou seja, que me toque. Assim, o isolamento social não acontece na prática”, descreve.

Pereira também lembra que as pessoas com deficiência visual precisam tocar mais nos objetos quando estão em trânsito, como corrimão e botões de elevadores. “Também não sabemos se estamos mantendo uma distância segura ou se há alguém gripado por perto”, destaca.

Além disso, a experiência é desagradável. “No mercado, precisamos de alguém para ler e descrever os produtos e preços. Demoramos mais para chegar, comprar e retornar, o que seria evitado com uma web inclusiva”, opina Gleison.

“Nós, surdos, encontramos atendentes que desconhecem Libras ou máscaras que impedem a leitura labial”, acrescenta Ohkawa.

Problemas no home office

Durante a pandemia, muitas instituições ofereceram cursos online a distancia. Gleison encontrou videoaulas e podcasts pouco descritivos. “Ao falar sobre uma conta matemática, o professor precisa descrevê-la para o cego entender”, exemplifica. Outro problema foram materiais inadequados cedidos pelas escolas, como arquivos em formato pdf, que não foram acessibilizados. “Os softwares não leem imagens”, justifica.

Já Ohkawa aponta a dificuldade de acompanhar colegas nas reuniões online, realizadas no home office. “Sou oralizado, sinalizado e usuário de implante coclear. Ainda assim, percebo que a leitura labial pelo computador é bastante complicada. No meu caso, felizmente, são disponibilizados intérpretes de Libras e chat online”, compartilha.

Alexandre Dantas Ohkawa se deparou com a falta de acessibilidade nos chats de plano de saúde e atendimentos médicos por vídeo (crédito: arquivo pessoal)

Populares na quarentena, as lives nas redes sociais também excluíram os surdos por não contarem com sinalização ou legendas. “Poucos cantores famosos aderiram. Conheci o trabalho de uma artista assim”, comemora Ohkawa.

Mudar essa realidade de exclusão exige sensibilizar os desenvolvedores de sites, aplicativos e redes sociais, além daqueles que produzem conteúdo online. “Para isso, o Movimento Web para Todos oferece diferentes materiais de formação na sua página”, aponta Freire.

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