Leonardo Valle
Em vigor desde 2003, o Estatuto do Desarmamento impede o porte de armas por civis, exceto em situações de comprovação de necessidade especial. Atualmente, diversos projetos de lei em trâmite no Legislativo pedem a revogação dessa legislação visando diminuir a violência no país – algo contestado pelos pesquisadores da área de segurança pública.
“Não se trata de opinião, posicionamento político ou ideológico. Todos os dados científicos e acadêmicos do Brasil e internacionais apontam, de forma consensual, que o aumento da circulação de armas de fogo tem impacto negativo nos índices de violência letal”, contextualiza o assessor do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli.
Segundo o especialista, a violência é um fenômeno complexo e influenciada por outros fatores, como desigualdade social e faixa etária da população. Isso impede, por exemplo, a comparação direta entre países com e sem porte de armas.
“Os Estados Unidos, por exemplo, têm maior circulação de armas e é menos violento que o Brasil. Contudo, quando comparado com nações que possuem o mesmo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), vemos que eles são mais violentos”, ressalta.
Mesma opinião possui o conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Daniel Cerqueira, autor de um estudo que apontou que o aumento de 1% de armas de fogo eleva em até 2% a taxa de homicídio. Ele lembra que, no Brasil, os criminosos não são os únicos que matam.
“De toda a violência intencional, aproximadamente 20% são de relações interpessoais. Ou seja, assassinatos em crimes passionais: quando o marido mata a mulher, brigas de trânsito, por política ou desavença entre vizinhos”, lista. “Uma arma dentro de casa também aumenta em cinco vezes a chance de morte no domicílio, seja por homicídio, acidente ou suicídio”, acrescenta.
De acordo com Angeli, dados mostram que a chance de morrer em um assalto estando armado é maior – o que contradiz o argumento de que a arma de fogo é um bom instrumento de defesa. “O bandido estuda a vítima antes de atacar e conta com o fator surpresa, dificultando um contra-ataque”, esclarece.
Mercado ilegal abastecido
A flexibilização do Estatuto do Desarmamento já é uma realidade desde 2007, quando projetos de lei aprovados facilitaram, gradativamente, o porte de armas para carreiras técnicas como juristas, fiscais, promotores e seguranças particulares.
Um levantamento realizado pelos Correios mostrou que, entre 2010 e 2017, foram liberadas aproximadamente 66 armas por dia para pessoas físicas. Essas são registradas no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), administrado pela Policia Federal. Já o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), gerenciado pelo exército, emite licenças específicas para militares, colecionadores e caçadores. Nesse grupo, foram mais de 270 mil registros liberados somente em 2016.
“Um problema grave é que a arma de fogo utilizada pela criminalidade tem, justamente, origem legal. Ela é extraviada, desviada ou roubada e tem seu número de registro apagado, o que dificulta o rastreamento”, relata Cerqueira.
Segundo o pesquisador, em dez anos, cerca de 18 mil armas foram extraviadas de empresas de segurança particular do Estado do Rio de Janeiro, segundo apurado pela CPI das armas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). “Os dois bancos de dados em vigor hoje, Sigma e Sinarm, não dialogam entre si, o que também prejudica esse monitoramento”, informa. “Em outras palavras, o efeito colateral do aumento da circulação desses produtos legais é alimentar o mercado ilegal”, pontua.
Outro problema é a durabilidade do item que, quando extraviado, pode circular por décadas na ilegalidade. “Muitas das armas aprendidas hoje com criminosos foram vendidas em lojas de departamento antes do estatuto do desarmamento. Possuem mais de 30 anos e ainda funcionam”.
Interesses econômicos
Um levantamento do site Congresso em Foco apontou que o número de parlamentares eleitos e vinculados à chamada bancada da bala, que defende o fim do desarmamento, saltou de 36 para 102 entre 2014 e 2018. Já dados do Tribunal Superior Eleitoral mostram que a principal empresa fornecedora de armas para as polícias militar e federal, a Taurus, doou legalmente R$ 870 mil para campanhas de políticos somente nas eleições de 2014.
“Penso que o maior interessado na revogação e flexibilização do estatuto do desarmamento é a indústria bélica, que lucraria com a venda de mais produtos. Não beneficiaria a população”, opina Angeli.
Para Cerqueira, a vinculação do fim da violência ao armamento da população é uma saída simplista e populista. “É um argumento que vai ao encontro de uma população que está atemorizada. Contudo, vivemos em um país já polarizado e dividido. O aumento da circulação de armas nessas condições é uma tragédia anunciada, haveria muitas mortes”, lamenta.
Angeli defende que todos os segmentos da população ficariam vulneráveis à violência com o fim do Estatuto do Desarmamento. Contudo, grupos minorizados seriam especialmente impactados. “Como os jovens negros da periferia, LGBTIs, mulheres, indígenas e lideranças ambientais”, aponta.
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