Leonardo Valle
Transformar esgoto em energia pode parecer parte de um roteiro de ficção científica, mas isso já é realidade em países como Alemanha e, também, Brasil. Esses detritos orgânicos podem virar biogás – mistura gasosa, rica em metano e gás carbônico com alto potencial energético. O processo é realizado nas chamadas “plantas de tratamento de esgoto” (o correspondente a uma usina), nas quais esse material passa por tanques até se transformar nessa substância. A degradação é feita por micro-organismos sem a presença de oxigênio (anaeróbio).
“De um lado, é produzido o biogás. Do outro, como resíduo, há o lodo, que pode ser aproveitado como fertilizante na agricultura, uma vez que é rico em matéria orgânica, umidade, fósforo e nitrogênio”, conta o pesquisador em engenharia sanitária e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Augusto de Lemos Chernicharo.
Segundo ele, o processo anaeróbio já é utilizado, hoje, em aproximadamente 40% das estações de tratamento do esgoto (ETE) no país. “O que acontece é que não se recupera ou aproveita o biogás. O metano é incinerado para não ir direto para a atmosfera, já que contribui com o efeito estufa e tem potencial trinta vezes maior que o gás carbônico”, contextualiza.
O lodo, por sua vez, tem um destino mais dramático, indo parar nos aterros sanitários e lixões. “Lá, também vai contribuir com a geração de metano, mas uma parcela significativa do gás pode escapar e acabar justamente na atmosfera”, acrescenta.
De acordo com o especialista, com exceção de alguns poucos locais (majoritariamente do Paraná), o lodo no Brasil é quase 100% descartado e não aproveitado. Além disso, ele próprio pode virar energia.
“Se é grande o potencial de gerar biogás a partir do esgoto, que é um resíduo diluído e com pouco conteúdo de matéria orgânica, é muito maior o potencial e a viabilidade de se gerar biogás a partir de resíduos mais concentrados em matéria orgânica, a exemplo do lodo e dos resíduos sólidos urbanos”, completa.
Cadeia poluente
Via de regra, o lodo é hoje transportado em caminhões para os lixões, que utilizam diesel e liberam gases de efeito estufa, contribuindo para o aquecimento global”, adverte. Outro agravante é que as ETEs não tratam completamente o esgoto, lançando fósforo e nitrogênio nos corpos de água [grandes acumulações desse líquido, como oceanos, mares, lagoas e zonas úmidas].
“Quem precisa desses nutrientes é o solo, sendo eles tóxicos para os peixes e indutores do crescimento de plantas aquáticas, comprometendo assim a qualidade das águas dos corpos hídricos, principalmente de lagos e represas”, pontua o pesquisador.
Para ele, a implantação de uma planta de biogás nessas estações que já usam o processo anaeróbio para tratar o esgoto representaria benefícios ambientais, sociais e econômicos. “Ao invés de queimar ou ser mandado para a atmosfera, esse metano poderia ser utilizado como combustível para carros, como gás de cozinha – para a população que vive no entorno das plantas – ou gerar energia elétrica e térmica. Ela poderia ser usada para consumo na própria usina, e seu excedente ser vendido para as concessionárias de energia”, indica.
“Em locais que já utilizam o processo anaeróbio de tratamento de esgoto, a geração de biogás é intrínseca ao processo e sairia quase que de graça, bastando apenas o aprimoramento do sistema de coleta dos gases. No caso da sua utilização como gás de cozinha, necessitaria de um tratamento simplificado e de uma rede para chegar até a população”, defende.
Energia limpa
Chernicharo lembra que uma das vantagens do biogás é ser uma energia limpa. “Ele não emite gás de efeito estufa já que o gás carbônico resultante de sua queima é considerado neutro, que é aquele que já está presente no ciclo do carbono no planeta”, diferencia. “Ao contrário das fontes derivadas do petróleo, onde o carbono é retirado do fundo da terra ou dos oceanos para ser jogado na atmosfera”, completa.
“A desvantagem é que seu potencial de calor é um pouco menor do que o gás natural”, pondera.
A Alemanha é um dos países referências no uso da energia vinda do aproveitamento do biogás gerado a partir do esgoto. “Mas ao contrário do Brasil, que trata esse material em processo anaeróbio, lá eles só fazem isso com o lodo. O motivo é que isso só é viável em climas quentes. Nesse sentido, temos mais potencial que eles”, indica.
O Brasil também possui boas experiências no tratamento do lodo de esgoto e de resíduos sólidos urbanos. A primeira usina do tipo começou a funcionar no Paraná, em 2018, com potencial para tratar 1.000 metros cúbicos (m3) de lodo de esgoto e 300 toneladas de resíduos orgânicos por dia.
O caminho para o aproveitamento do biogás gerado a partir do tratamento do esgoto para geração de energia elétrica e térmica, contudo, ainda é longo. Segundo um levantamento de 2018 do Instituto Trata Brasil, 55% do esgoto gerado no país não é sequer tratado. “Ainda consideramos esse tratamento apenas como gasto, não como um potencial gerador de energia e de economia, para além dos benefícios do saneamento do meio”, lamenta.
Veja mais:
Projeto criado por moradores da periferia de São Paulo ensina a produzir biogás
Constância dos ventos e produção em todos os momentos do dia são vantagens da energia eólica
Construção de hidrelétricas desconsidera impactos no meio ambiente, alerta estudo
Potencial do Brasil em energia solar é subaproveitado, aponta especialista
Crédito da imagem principal: Bernardo Ornelas