Era 2018 quando o educador parental Humberto dos Santos, 44 anos, tornou-se pai de Apolo e se deparou com a falta de repertório sobre paternidade.
“Aprendi que só damos o que recebemos. Como meu pai me abandonou quando eu tinha um ano, não havia memórias de afeto ou cuidado, então eu não sabia como gerar em mim um pai zeloso e afetuoso”, compartilha.
“Também havia dúvidas sobre como levar o letramento racial para o meu filho. Se deveria abordar situações de racismo previamente ou não”.

Porém, ao buscar grupos de pais e masculinidade, Santos encontrou pares brancos e que não acolhiam questões de raça.
“Cheguei a ser alvo de comentários racistas. Era ano eleitoral, e quem falava em racismo era visto como vítima ou comunista. Foi quando publiquei um post no Facebook buscando outros pais pretos para trocar experiências, e viralizou.”
Foi plantada ali a semente do “Coletivo Pais Pretos Presentes”, formalizado em 2020. Cinco anos depois, ele reúne pais em rodas de conversa presenciais e online, em 36 grupos de WhatsApp que abordam desenvolvimento pessoal, planejamento profissional e educação parental, além de oferecer apoio psicológico. Atualmente, Santos também atua na formação de agentes de saúde sobre as particularidades da população de pais pretos.
Na primeira semana do coletivo, um pai contou sobre o filho de quatro anos que não queria ir à escola porque escutou um colega dizer que não gostava de meninos pretos. “Os pais mais experientes – um deles de 60 anos e com cinco filhos – puderam acolhê-lo. Foi quando percebi que não se tratava de uma roda de conversa, mas de uma rede de apoio paterna”, relembra Santos.
Outro pai compartilhou que perdeu a filha de cinco meses e notou que as pessoas não o consolavam, focando-se apenas na companheira dele. “Ele questionou por que a sociedade não enxergava a dimensão afetiva do homem preto”, conta Santos.
“Relatos que me conectaram com memórias e vivências dolorosas que eu não sabia que tinha e que me motivaram a buscar terapia. Cada pai, mãe ou criança que participa do coletivo me ajuda a aprender mais sobre mim, minha paternidade e meu filho”.
Influência do racismo na paternidade
Santos explica que o racismo dificulta a vivência da paternidade de diversas maneiras, sendo a falta de referência a principal delas. Segundo dados da Rede de Observatórios da Segurança, 87,8% das vítimas fatias de violência policial em 2023 eram pessoas negras.
“Meninos que vivem em comunidades em vulnerabilidade social raramente terão uma figura paterna presente e ativa porque o pai poderá estar encarcerado ou ter sido assassinado. A violência policial ainda impede que um homem preto se dê o luxo de brincar com os filhos em ambientes públicos, como correr na pracinha”, diz ele.
Outra questão é a vulnerabilidade econômica da população preta. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021, a proporção de pessoas pobres no país, nos parâmetros do Banco Mundial, era de 18,6% entre os brancos, 34,5% entre pretos e 38,4% entre pardos.
“No Ocidente, a paternidade é geralmente entendida como ser provedor, posição difícil de homens pretos ocuparem devido ao desemprego e subemprego. Assim, muitos evitam constituir família, e as crianças chegam de forma não planejada”.
O problema também atinge a autoimagem do homem preto, que geralmente é representado pela mídia como violento ou tem sua ancestralidade classificada como demoníaca por religiões fundamentalista.
“Entre os reflexos da colonialidade, há a desvalorização da cultura afro-brasileira, de sermos vistos apenas como descendentes de escravos e o fato de termos tido os documentos que registravam nossa origem incinerados. Além disso, receber e dar afeto é desafiador para homens pretos devido à memória ancestral de dor e de separações durante a escravidão.”
“Tudo isso junto faz com que seja difícil para o homem preto se ver merecedor de ter uma família ou capaz de oferecer experiências positivas aos filhos. É preciso reconstruir essa autoimagem de pai, cuidador e parceiro”, resume.
Feridas revisitadas
Santos explica que, ao cuidar do filho, o homem preto não raro se depara com suas próprias dores de infância.
“Quando banho meu filho ou o ajudo na tarefa da escola, lembro que não recebi isso, que não tenho referência simbólica”.
Outra dor é ensinar os filhos a lidar com racismo. “Nenhum pai branco precisa pedir para o filho levar o documento ao ir na padaria, para não usar capuz e para andar com a nota fiscal da bicicleta no bolso para não se acusado de roubo”.
Já revisitar o bullying e o racismo presentes na escola foi desafiador para o assistente social Leandro Rocha da Silva, 46 anos, pai de Nicolas, de nove anos.
“Quando Nicolás sofreu racismo na escola, eu lembrei do que aconteceu comigo quando criança. Precisei respirar para não transferir meus sentimentos para ele”, compartilha.
Silva conta que teve uma boa referência de figura paterna, mas chegou ao coletivo sentindo a necessidade de falar sobre temas da realidade atual. “Quando se tem filhos, o medo de ser agredido por conta da sua pele ganha outros contornos. Além do receio de ser morto e deixar a família em uma situação afetiva e econômica vulnerável, há o receio de que a violência se estenda a eles”.

Fortalecimento de autoestima
Os pais do coletivo entendem que a paternidade preta fortalece a autoestima e a consciência racial das crianças negras.
“Traz a imagem positiva de pessoas negras e segurança ao construir redes e vínculos afetivos”, diz Santos.
“Para mim, é importante mostrar a valorização da intelectualidade negra. Há o vínculo da nossa população com futebol e música, que são válidos, mas também podemos estar em qualquer outro lugar”, acrescenta Silva.
“É importante fortalecer o respeito social e a imagem das pessoas negras, fazendo o filho sentir orgulho de ser quem é e não querer se adaptar a uma sociedade que exclui por conta da cor de pele”, opina o designer Willians Prado, 39 anos, pai de Benício, dois anos, e de uma menina em gestação.

As rodas de conversa e os grupos de apoio também transformam os pais.
“Foi a paternidade que me levou a buscar repertório sobre a nossa cultura”, lembra Santos.
“Os encontros ajudam a romper com o silêncio e o isolamento impostos aos homens, a romper com o conceito do ‘homem durão’ que não pede ajuda”, explica Silva.
“É possível compartilhar experiências de peito aberto, sem receio de julgamentos, e escutar outros pais pretos de classes sociais e vivências diferentes”, aponta Prado.
Para homens pretos que se tornaram pais recentemente, Santos lembra que que não existe um único modelo de paternidade. “Muitos tentam seguir um ideal e se frustram. O importante não é ser o ‘melhor pai’, mas focar em ser o melhor possível, cuidando de si mesmo, assumindo suas dores e fraquezas. Isso traz leveza à paternidade e permite entregar cuidado e carinho de forma consciente”, finaliza Santos.
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