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Mulher, mãe, profissional, tudo simultaneamente e no mesmo ambiente. A quarentena revela o desafio delas no trabalho, diante das relações afetivas e da vida pessoal. Para entender como lidar com essas múltiplas jornadas e, ao mesmo tempo, lutar pela igualdade de gênero e pelo respeito aos desejos individuais, o Instituto Claro conversa com a psicanalista e professora Maria Lucia Homem.

Maria Homem
Maria Homem (crédito: Victor Affaro)

“Não é mais o Deus ou o patriarca que vai dizer quem é você. É você que vai escolher o que você quer estudar, com quem você quer casar; como que você quer passar os seus dias. Afinal é você que vai estar fazendo sexo, que vai estar convivendo, conversando e trabalhando”, observa a psicanalista.

Luta necessária

No podcast, ela cita exemplos que demonstram que decidir sobre o próprio destino é a base da modernidade e explica porque o feminismo é necessário para que as mulheres tenham seus anseios respeitados.“Por que a gente precisa fazer uma afirmação? Porque a gente parte de um lugar negativo. É esse o ponto que, às vezes, dá um pouco de conflito”, aponta. E segue: “‘Opa, você não está com vontade de ser mãe, você é problemática’. ‘Você está querendo o que, ser oradora, ser escritora? Nã, nã, nã! Shhhhh’. Até que ao longo desses últimos séculos, sobretudo últimas décadas, a gente diz ‘alto lá!’. É uma luta necessária de equivalência de lugares subjetivos”.

Essas e outras lutas do “eu” geraram o recém-lançado livro “Lupa da Alma – quarentena revelação”. Ao escrever um documento que traz um olhar da psicanálise sobre o ano de 2020, Maria Homem constata que o vírus é uma lupa e revela inúmeros problemas, sobretudo para as mulheres.

“Aumento, sob qualquer ponto de vista, de violência doméstica, feminicídio. Sobrecarga sobre a mulher, no trabalho material de cuidado da casa; da carga mental, emotional labor; cuidado com a criança, cuidado com a educação, acompanhamento da escola, reuniões; diferença de salário, maior desemprego entre as mulheres; tudo que, não só os feminismos, mas todos os números, as pesquisas estavam mostrando há décadas, o ano de 2020 mostrou para a gente que é isso mesmo”, alerta.

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Transcrição do Áudio

Música “Awaken”, de Anno Domini Beats, fica de fundo

Maria Homem:
Não é mais o Deus ou o patriarca que vai dizer quem é você. É você que vai escolher o que você quer estudar, com quem você quer casar; como que você quer passar os seus dias. Afinal é você que vai estar fazendo sexo, que vai estar convivendo, conversando e trabalhando.
Eu sou a Maria Homem, trabalho com psicanálise, dou aula, palestra, escrevo, enfim, eu estou no reino da palavra.

Vinheta: “Instituto Claro – Cidadania”

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
Qual o desafio da mulher no trabalho, diante das relações afetivas e da vida pessoal? Como isso se dá em um momento em que todas essas funções, em muitos casos, têm de ser vividas em um mesmo ambiente, a casa? Neste podcast, o Instituto Claro conversa com Maria Homem sobre as múltiplas jornadas femininas.

Maria Homem:
Mulher, mãe, profissional; tem aquela que é a pessoa, a mulher, aí aquela que é a humana, mas também gera vida, se ocupa de outra vida, educa, forma, cuida. Muitas vezes, e sobretudo no início, cedendo uma parte importante do seu próprio corpo. Ela gera, ela amamenta, então é a mãe, tudo que isso vai implicar e, há relativamente pouco tempo em termos históricos, aquela que está no espaço público, o trabalho. E que pode propor serviços, servir o Estado, pensar, liderar e é a mulher que está na rua. Agora, além dessa, é aquela também que tem uma posição no mundo: lê jornal, lê livro, dialoga, debate. Essas coisas, claro, elas se misturam nessas várias camadas, simultaneamente.

Marcelo Abud:
Diante dessa tripla jornada, é possível ainda respeitar a natureza e os desejos de mulher?

Maria Homem:
Eu também já posso dividir – acho que isso é muito importante – entre o humano, assim, um ser que é o sapiens, que sente, que sofre, que vai lá fazer o seu percurso, sua vida, seu caminho, suas dúvidas, suas inquietações e que é um pouco unissex; e a mulher como um corpo sexuado, que tem um processo de feminilidade, seja essa feminilidade homo, hetero, trans, bissexual, o que também é um outro lado muito importante da vida e que, às vezes, conflita até com o seu lado de humana e com o lado de profissional e com o lado de mãe.

Marcelo Abud:
Nas últimas décadas o feminismo tem sido fundamental na luta pela igualdade de gênero.

Maria Homem:
Por que a gente precisa fazer uma afirmação? Porque a gente parte de um lugar negativo. É esse o ponto que, às vezes, dá um pouco de conflito. Muita gente vai dizer: ‘eu não sou feminista, eu sou feminina’. Ou tem medo que esse lugar de feminista resvale uma água um pouco suja, de uma pessoa – vou usar um clichê aqui – mas… feia, mal cuidada, agressiva, infeliz, mal amada, todos os preconceitos desse lugar, tanto por parte de homens quanto de mulheres, de ricos, pobres, enfim…

Música: “Respeita as mina” (Kell Smith)
Cê fica em choque por saber
Que eu não sou submissa
E quando eu tenho voz cê grita: “ah lá a feminista! ”
Respeita as mina
Toda essa produção não se limita a você
Já passou da hora de aprender
Que o corpo é nosso nossas regras nosso direito de ser

Maria Homem:
Então, a gente foi fazendo divisões de gênero, divisão social do trabalho e divisão sexual do trabalho. Quem faz o que, aonde? Já que nos foi dada a graça da reprodução da vida, a nós, digo, ao meu sexo biológico, de alguma maneira há muitos milênios a gente falou ‘ah, tá, então você vai fazer prioritariamente isso e só isso’. ‘Opa, você não está com vontade de ser mãe, você é problemática’. ‘Você está querendo o que, ser oradora, ser escritora? Nã, nã, nã! Shhhhh. Um grande (shhhhh)-silenciamento do feminino, até que a gente ao longo desses últimos séculos, sobretudo últimas décadas, a gente diz ‘alto lá!’. É uma luta necessária de equivalência de lugares subjetivos: todos temos o mesmo direito a sermos sujeitos, né, usufruir do corpo, da vida, da mente e é simples assim.

Marcelo Abud:
Durante a quarentena, Maria Homem ampliou o olhar sobre as diversas jornadas que temos vivido. O resultado é o livro “Lupa da Alma”, lançado em novembro.

Maria Homem:
… que tem o subtítulo “Quarentena revelação”, que traz a hipótese básica de que este momento duplo que é viver sob uma ameaça do vírus e ter como estratégia de defesa o confinamento, essas duas coisas juntas, elas desvelam estruturas.

Marcelo Abud:
“Lupa da Alma” tem como desafio escrever um documento para marcar o ano de 2020. No calor dos fatos, o livro contempla e expande também as jornadas da mulher. Uma das constatações de Maria Homem, enquanto escrevia, é de que o vírus é uma lupa que revela e agrava inúmeros problemas.

Maria Homem:
Aumento, sob qualquer ponto de vista, de violência doméstica, feminicídio, agora!; sobrecarga sobre a mulher, no trabalho material de cuidado da casa; da carga mental, emotional labor; cuidado com a criança, cuidado com a educação, acompanhamento da escola, reuniões; diferença de salário, maior desemprego entre as mulheres; tudo que, não só os feminismos, mas todos os números, as pesquisas estavam mostrando há décadas, o ano de 2020 fez assim oh ‘tuuuuuuu’: explodiu as estatísticas e mostrou pra gente que é isso mesmo.

Música: “Pagu” (Rita Lee / Zélia Duncan)
Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão

Marcelo Abud:
Maria Homem considera o direito de decidir sobre a maternidade uma das grandes conquistas da mulher na virada do século 20 para o 21. No entanto, ela ressalta que a vontade de a mulher decidir sobre os rumos que deseja tomar ainda geram reação em parcela da sociedade.

Maria Homem:
Tanto assusta muito que a gente tem movimentos de contrarreação, que dizem, ‘meu Deus, o mundo está perdido’, ‘é a destruição das famílias’, então, às vezes, eu posso dizer isso e vem uma fala do tipo: ‘Jesus vai estar no seu coração, vou orar por você’. Não é essa a questão, não tem nem Deus nem o Diabo que vá mudar o paradigma ultramoderno que é o nosso, que vai, simplesmente, dar o direito do sujeito individual de escolher o seu destino.

Música: “Dom de Iludir” (Caetano Veloso)
Não me venha falar na malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
A pandemia torna a jornada difícil para todos, mas ainda mais desafiadora para as mulheres. Em meio às muitas expectativas depositadas nelas, precisam seguir lutando por igualdade de gênero e pelo respeito aos próprios desejos.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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