O livro infantojuvenil “Eu devia estar na escola” foi idealizado a partir de 1,5 mil cartas escritas por crianças moradoras do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro (RJ), e endereçadas às autoridades brasileiras para retratar as consequências da violência no conjunto de 16 favelas.
“Essas crianças, toda vez que tem operação policial, elas não têm aula. Elas têm muitas aulas perdidas no ano letivo”, explica a professora, pesquisadora sobre literatura infantil e coautora da obra Ananda Luz.
“Tem uma frase que foi parar no livro, de uma das crianças, que diz assim: ‘Como é que a gente vai fazer para realizar os sonhos se a gente perde tanta aula?’ E isso me toca muito, porque essas crianças sabem que a educação seria um caminho para melhorar de vida. E, ao mesmo tempo, a escola é cancelada com frequência por causa de tiroteios, por causa de operação policial”, conta a jornalista e coautora do livro Isabel Malzoni.
Organizado em conjunto com a ONG Redes da Maré, a obra é composta por desenhos e cartas de crianças, que desde muito cedo, precisam lutar por seus direitos segundo as autoras.
“Eu li todas, e elas têm esse desejo em comum, que é o desejo de ir à escola, uma particularidade muito forte. Porque essa escola, com frequência, é fechada por causa dos tiroteios, por causa das operações. Então esse desejo é um desejo que aparece para todos”, afirma Malzoni.
“Quando a violência tira a escola dessas crianças, ela tira também a possibilidade de ela construir outros mundos. Criança que está com o uniforme da escola deveria estar blindada, deveria estar circulando segura pela cidade”, completa Luz.
Crédito da imagem: Editora Caixote – divulgação
Introdução da música “O Futuro que me alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo
Ananda Luz:
A gente vai falar aqui de um território, que é o território da Maré, onde o livro “Eu devia estar da escola” foi construído coletivamente, com essas crianças. Essas crianças, toda vez que tem operação policial, elas não têm aula. E afetam elas de certa maneira que elas têm um grande número de aulas perdidas no ano letivo.
O meu nome é Ananda luz. Sou professora e pesquisadora sobre literatura infantil, com atuação na Casa Tombada, na pós do livro para a infância, e hoje também na Casa Tombada coordeno uma pós de educação e relações étnico-raciais.
Isabel Malzoni:
Tem uma frase que foi parar no livro, de uma das crianças, que diz assim: “Como é que a gente vai fazer para realizar os sonhos se a gente perde tanta aula?”. E isso me toca muito porque essas crianças, elas sabem que a educação seria um caminho para melhorar de vida, né, são crianças que escutam isso desde muito cedo. E, ao mesmo tempo, a escola é cancelada com frequência por causa de tiroteios, por causa de operação policial.
Oi, eu sou Isabel Malzoni, eu sou editora à frente da Caixote, que é uma editora interessada em livros ilustrados e literatura infantojuvenil. E, aqui no projeto “Eu devia estar na escola”, eu sou uma das coescribas junto com a Ananda luz.
Vinheta “Instituto Claro – Cidadania”
Música Quincas Moreira, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
O bairro da Maré, no Rio de Janeiro, é composto por 16 favelas. A região é marcada por um histórico de ações policiais de enfrentamento ao comércio de drogas. Isso expõe crianças ao contato com a violência desde muito cedo.
Em 2018, Marcus Vinícius da Silva, de 14 anos morreu após ser baleado a caminho da escola. A tragédia gerou um movimento que resultou em mais de 1.500 cartas escritas por crianças da Maré, dirigidas a autoridades brasileiras. Esse é o ponto de partida do livro “Eu devia estar na escola”.
Isabel Malzoni:
Quando eu vi esses desenhos e essas cartas no jornal, eu entendi que a única possibilidade de fazer um livro sobre isso seria por meio das crianças mesmo, seria elas fazerem o livro pra contar como é que é viver em um território conflagrado, né, um território com violência.
Então as cartas de 2019 elas tinham o objetivo de falar sobre as operações policiais para autoridades públicas. Eu li todas elas e elas têm esse desejo em comum, que é o desejo de ir à escola, que é uma particularidade muito forte. Porque essa escola, com frequência, não funciona, ela é fechada por causa dos tiroteios, por causa das operações. Então esse desejo é um desejo assim que aparece para todos os lados.
Assim como o medo. Outra particularidade que a gente encontra nas cartas é um medo muito frequente, que é o medo de perder a vida, o medo de olhar para o lado e ver alguma coisa que não deveria ver e enfrentar alguma consequência por isso, o medo de perder os pais. Tem uma frase no livro dizendo: “Imagina se minha mãe se assusta e resolve vir me buscar e um tiro pega nela?” Isso é uma coisa que aparece muito e que é muito triste.
Marcelo Abud:
Ananda Luz compartilha alguns relatos que estão no livro.
Ananda Luz:
Essa página que é “Queria que eles explicassem como a gente vai fazer para realizar os sonhos se perdemos tantas aulas”. Na seguinte, tem outro trecho que é: “Às vezes eles atingem uma criança, ninguém viu que o menino estava com roupa de escola?”. Eu acho que é importante a gente frisar esse lugar da escola, principalmente quando ele é pra populações periféricas, para pessoa pobre. Quem nunca ouviu: “A única forma de você crescer na vida e vencer” – eu ouvia isso da minha avó direto – “é estudar”. “Estuda, menina. Estuda, menina”. Eu ouvia isso o tempo inteiro.
Então, a escola é no discurso e deveria ser um lugar seguro para poder construir outras possibilidades de vivência e de realidade que não deveria estar acontecendo. Mas já que acontece, onde eu vou construir isso é na escola. Quando a violência, ela tira a escola dessas crianças, ela tira também a possibilidade dela construir outros mundos, né? Criança que está com o uniforme da escola, ela deveria estar blindada, ela deveria estar circulando segura pela cidade.
Marcelo Abud:
O livro também apresenta as propostas das crianças da Maré para transformar a realidade em que estão inseridas.
Ananda Luz:
Quando uma criança diz aqui: “Penso também tudo o que poderia ser diferente” é porque elas estão ali, refletindo em tudo que poderia ser diferente. Então elas precisam ser escutadas. E as crianças não são escutadas, porque a gente bota ela nesse lugar de que elas não compreendem. “Ah, ainda é muito cedo”. E o livro também vem para mostrar que elas compreendem, sim, o contexto que elas vivem, que elas fazem críticas mesmo ao que elas vivem, quando tem lá elas falando que elas queriam estudar, elas reivindicando a escola como um processo de transformação das suas vidas. Quando elas falam dos direitos delas serem respeitados, né? Quando elas se reclamam lá: “Na televisão, não vão contar como foi, só vão dizer ‘Há tantos feridos, são tantos mortos’” … Como se só fossem números. E não são números. Então as crianças sabem disso.
Marcelo Abud:
Para organizar o livro “Eu devi estar na escola”, Izabel Malzoni e Ananda Luz tiveram encontros com as crianças. A ideia foi a de conseguir, também, relatos positivos a respeito das favelas da Maré.
Ananda Luz:
A gente também escutou as crianças falando o que que tinha de bom em viver na Maré. A gente conversou sobre tudo, né? Porque a gente conversou sobre a vida na maré com essas crianças. Elas traziam… o “chuveirão” era uma outra potência, né, que eu brinco que é uma tecnologia social para lidar com calor. Em que lugar você encontra o “chuveirão” ali disponível para você se refrescar a hora que você quiser, para todas as pessoas?
As crianças falaram da gastronomia do espaço, que tem o melhor açaí do mundo. Então as crianças veem beleza no espaço e elas gostam do espaço onde elas vivem, né? Também tem uma coisa que eu acho que é importante, que no livro teve as crianças que potencializaram os espaços, que são os espaços interessantes, né? Aqui, uma casa, um parquinho, um balanço, um arco-íris, muitas estrelas junto com o arco-íris, enfim, tudo que ela vê de beleza. E lá tem o lugar que eles destacavam como um lugar interessante, que foi uma ação da Redes da Maré, que é a Praça da Paz. Era um lugar de conflito, e foi construído uma praça. Esse lugar parou de ter tantos conflitos ali, porque as crianças ocupam essa praça; elas brincam nessa praça, que de certa maneira e de muitas formas elas ajudaram a construir, tem a marca delas ali.
Marcelo Abud
O livro demonstra como crianças que moram na Maré e em outras favelas do Rio de Janeiro e do Brasil, aprendem a importância de lutarem por seus direitos.
Ananda Luz:
Não dá para as crianças só brincarem na rua quando não tiver conflito. Elas têm que ter o direito de brincar na rua e de estar na rua com a família delas a hora que elas quiserem, né, não quando não tem conflito. Porque quando tem conflito, elas têm que sair correndo, abaixar a cabeça, se esconder na primeira casa que elas encontram, porque tem estratégia. Crianças tão pequenas pensando em estratégias para se proteger de um conflito. Não precisa. Elas precisam se preocupar em brincar, em se relacionar com os amigos e, enfim, de estar na rua. A gente andou muito pela Maré, né, indo da escola para a Redes da Maré, para outra escola. A gente passou muito a pé. E a gente via as crianças na bicicleta, no patinete, jogando bola. Então eu acho que esse direito de viver o seu bairro, de poder estar no seu bairro, de poder usufruir do seu bairro, não é?
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
Organizado em conjunto com a ONG Redes da Maré, o livro “Eu devia estar na escola” é composto por desenhos e relatos de crianças. A proposta é gerar reflexão sobre os direitos da infância, como os de ir à escola e brincar.
Marcelo Abud para o podcast de Cidadania do Instituto Claro.