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Confira a transcrição do áudio
O Brasil tem 11 milhões de pessoas de 15 anos ou mais que não sabem ler, segundo dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Fora da idade escolar, elas podem encontrar na Educação de Jovens e Adultos (EJA) uma nova oportunidade de estudar. Porém, a parcela que busca essa modalidade de ensino ainda é pequena.
Recém lançada, a série “Segunda Chamada”, da TV Globo, promove o debate sobre a precariedade que esse formato tem enfrentado diante de cortes e dificuldades. Na contramão desses problemas, está o Colégio Santa Cruz em Alto de Pinheiros, na capital paulista (SP), que oferece turmas de EJA gratuitamente no horário noturno há 45 anos.
Segundo o diretor do período noturno da instituição, Fernando Frochtengarten, que você ouve no podcast, “70% dos alunos são nordestinos, vindos de áreas rurais, que não tiveram acesso à escola em seu lugar de origem. Muitos deles trabalham em serviços domésticos. Além disso, temos também um grande contingente de desempregados no momento”.
Ele afirma ainda que tem sido notado um aumento de jovens, com até 25 anos, que abandonaram os estudos numa outra condição. “São pessoas que nasceram na cidade de São Paulo, majoritariamente filhos de migrantes, que não tiveram condição de permanecer na escola pública.”
Em busca de autoestima, jovens e adultos tem o objetivo de aprender a desempenhar formas de oralidade adequadas aos espaços que frequentam, além da preocupação com a elevação da escolaridade, que pode proporcionar uma melhoria de trabalho e renda.
Enquanto as políticas públicas têm deixado a EJA de lado – no início de 2019 foi extinta a Secadi, que era responsável por essa área no Ministério da Educação (MEC) –, a instituição oferece ainda transporte (atualmente a maior parte dos alunos vêm de bairros mais distantes), lanche e tem parcerias com advogados e psicanalistas para os estudantes que precisam. A turma é formada, inclusive, por alguns motoristas e empregados domésticos das famílias dos alunos que frequentam o local durante o dia.
“A gente tem um contingente de pessoas que, potencialmente, poderiam participar da Educação de Jovens e Adultos: são 70 milhões de brasileiros que não terminaram o ensino médio. Desse grupo, segundo a Pnad 2018, 55 milhões não terminaram sequer o fundamental, são quase 11 milhões e meio de analfabetos”, revela Frochtengarten.
De acordo com o diretor, essa parcela da população é formada por pessoas que estão às margens dos processos formativos. Sem direito à educação, deixam de ter também direito ao trabalho, à saúde e acabam não participando da vida do país.
A reportagem do Instituto Claro ouviu também o professor de ciências, Felipe Bandoni, que dá aulas para crianças e também no curso noturno do colégio. “Essa ‘mudança na vida’ é muito mais imediata na EJA e muito mais revolucionária para esses alunos do que para os pequenos”, defende.
Créditos:
Os trechos de músicas utilizados no podcast, por ordem de entrada, são: “Canão foi tão bom” (Sabotage); “Sr. Presidente” (Projota / Tom Leite), com Projota; e “Me deixa falar” (Paula Toller e George Israel). As trilhas instrumentais são compostas e tocadas por Reynaldo Bessa.
Transcrição do áudio:
Debora Bloch:
“Eu acho uma vergonha a gente viver num Brasil com tantos analfabetos ainda, com tanta criança fora da escola. A EJA é exatamente uma segunda chance que as pessoas têm de aprender às vezes a coisa mais simples, que é escrever o próprio nome”.
Marcelo Abud:
Este é um trecho de depoimento dado ao GShow pela atriz Debora Bloch, que vive a professora Lúcia na série Segunda Chamada. A atração da TV Globo promove o debate sobre a precariedade da Educação de Jovens e Adultos, diante de cortes e dificuldades que essa modalidade de ensino tem enfrentado.
Vinheta: “Instituto Claro – Cidadania”
Música de fundo
Marcelo Abud:
O Colégio Santa Cruz, na zona oeste de São Paulo, vai na contramão desses problemas. Há mais de quatro décadas oferece, a cada semestre, bolsas de estudo integrais para 450 alunos da EJA no período noturno.
Fernando Frochtengarten:
Eu sou Fernando Frochtengarten, diretor dos cursos noturnos do Colégio Santa Cruz. Educação de jovens e adultos é um segmento da educação capaz de restaurar o direito de brasileiros que, historicamente, ficaram à margem dos processos sociais e políticos.
Música: Canão Foi Tão Bom (Sabotage)
“Canão foi tão bom, poder falar pro Dom / Que aprendi com o Jão como obter mais alegria / Cara, sempre informação, sangue puro e bom”
Fernando Frochtengarten:
São 70 milhões de brasileiros que não terminaram o ensino médio. Desses 70 milhões de brasileiros, segundo a Pnad de 2018, 53 milhões não terminaram sequer o ensino fundamental. São 11,5 milhões e meio de analfabetos. Toda essa leva da nossa população, historicamente, são pessoas que estão às margens dos processos formativos.
Música: Sr. Presidente (Projota / Tom Leite), com Projota
“Vontade a gente tem mas não tem onde trabalhar / Justiça a gente tem mas só pra quem pode pagar”
Fernando Frochtengarten:
As pessoas que não têm direito à educação, junto com isso, deixam de ter direito ao trabalho, direito à saúde, são pessoas que fazem parte de grupos sociais que acabam não tendo direito à participação na vida do país.
Marcelo Abud:
Professor de ciências na EJA do Colégio Santa Cruz, Felipe Bandoni atua também na formação de docentes. Ele cita alguns dos desafios de se lecionar para jovens e adultos.
Felipe Bandoni:
O primeiro impacto de um professor que faz esse caminho é encontrar uma diversidade, uma heterogeneidade muito grande de estudantes. Eu cheguei a ter uma turma com alunos de 16 anos e uma aluna de 82 anos na mesma sala. Mas que, conforme você vai se aprofundando e conhecendo os alunos, é uma diversidade também das expectativas que eles têm com a escola, da visão que eles têm de escola, na maneira de ver o mundo, nas crenças, no grau de escolaridade, mesmo estando na mesma sala, pessoas, por exemplo, que passaram por profissões que exigem mais leitura, mais escrita têm avanços diferentes em comparação com quem não passou. Então, assim, toda essa diversidade presente ali forma um caldo, que, à primeira vista, é um impacto muito grande para quem está chegando, e que, com o tempo, a gente vai percebendo que é o grande substrato pra trabalhar na EJA.
Maria Aparecida:
Me chamo Maria Aparecida Dias, tenho 43 anos, sou da fase 1 do médio. Antes, eu mandava uma mensagem, eu não sabia usar a pontuação, hoje, eu uso. Mudou bastante. Muitas clientes – porque eu trabalho na área da beleza – perceberam isso e elas me dão muita força pra eu continuar e nunca desistir.
Felipe Bandoni:
Então, a Cida foi minha aluna por três semestres e o que eu notei muito foi mesmo o desenvolvimento dela, justamente da fala. A Cida não falava desse jeito… Queria que você contasse, Cida, que que você viveu aqui na escola em relação a isso. Você sente que mudou? Primeiro lugar, você concorda comigo que mudou?
Maria Aparecida:
É, foi difícil, o telejornal foi um que eu fiquei muito nervosa, mas ensaiamos bastante e eu me senti feliz, porque acho que me sai bem, sabe? E mudou bastante. Eu tinha muita dificuldade, assim, de falar em público. Sei lá, eu ficava nervosa, tremia, dava aquele calor, sabe? [risada]. Mas, hoje não, hoje eu levo “de boa”, assim. Depois do telejornal foi uma experiência boa, mas todo mundo falou que eu fui bem. E eu fui mesmo. Até a Irene falou, né? [risada]. A Irene é minha cunhada. Ela ainda tá estudando aqui.
Fernando Frochtengarten:
Muitos alunos dizem que aquilo que mais levaram da escola é saber falar, saber se colocar, ter consciência sobre seus direitos e saber fazer uso da palavra a que têm direito, afinal de contas.
Felipe Bandoni:
E a gente tem um trabalho bem estruturado em torno disso: em proporcionar atividades em que eles desenvolvam esta habilidade de planejar a fala. Estudar um assunto e expor pros colegas, estudar um assunto e entrevistar um especialista, esse tipo de interação.
Marcelo Abud:
Fernando explica porque acredita que a oralidade deve ser valorizada no projeto pedagógico da EJA.
Fernando Frochtengarten:
Então, muitas vezes a gente fala sobre aquilo que leu, sobre aquilo que pesquisou. A gente escreve sobre aquilo que a gente ouviu. Então, as práticas de discurso oral da leitura e da escrita, elas se alimentam. Na vida real, elas tão muito articuladas entre si.
Música: “Me deixa falar” (Paula Toller e George Israel)
“Me deixa falar, me empresta um ouvido / Me deixa falar, me presta atenção”
Marcelo Abud:
Ao ser perguntado sobre uma maior oferta de cursos a distância de Educação de Jovens e Adultos, Fernando afirma que não há um único modelo, mas, no caso do Colégio Santa Cruz, a crença é de que as pessoas que buscam essa modalidade de ensino procuram mais do que apenas conteúdos.
Fernando Frochtengarten:
E eu te diria que pra todas essas pessoas há um fator que sinto ser muito significativo, que é a possibilidade de encontrar, na escola, um espaço de socialização, a possibilidade de estar entre pessoas que têm uma história semelhante, de estabelecer relações entre iguais, de participar de uma vida comunitária, que a gente tem visto que, para o trabalhador, migrante isto, muitas vezes, é um momento de exceção.
Felipe Bandoni:
E a gente investe bastante tempo e bastante energia pra trazer oportunidade dos alunos conhecerem outros espaços, fora da escola, e também transitar por espaços em que eles comumente transitam e vê-los de outra maneira. Uma visita ao centro histórico de São Paulo, o centro velho ali de São Paulo, traz para os alunos, assim, um olhar muito interessante. Vou te dar algumas falas, assim, muito surpreendentes que a gente escuta. Quando a gente leva os alunos à Avenida Paulista pra conhecer alguma exposição, pra visitar algum espaço cultural, a gente ouve sempre, em todas as turmas que eu levei a gente escuta “professor, esta é a primeira vez que eu venho à Avenida Paulista”. E eu, como pessoa que cresceu em São Paulo, eu fico muito surpreso de ouvir uma coisa dessa, uma pessoa que tá aqui na cidade há tanto tempo, muitas vezes pessoas que estão aqui há 20 anos, 30 anos, muitos nascidos aqui, não são só os migrantes, não conhecem espaços, assim, da cidade que são absolutamente centrais pra nossa vida aqui.
Maria Aparecida:
Eu fui no museu, no MASP, gostei bastante. Tinha muita coisa do meu tempo de criança, aquelas coisas bem antigas, ferro de passar roupa em brasa, enxada, peneira, essas coisas. Gostei. Marcou muito minha ida lá.
Felipe Bandoni:
Então, conhecer o centro, conhecer a Avenida Paulista, conhecer os centros culturais, ir ao cinema, ir ao teatro, ir a espetáculos de música, tudo isso a gente investe bastante energia em proporcionar.
Marcelo Abud:
A turma da EJA do Colégio Santa Cruz é formada, inclusive, por alguns motoristas e empregados domésticos das famílias dos estudantes que frequentam o local durante o dia. A rotina deles inclui, invariavelmente, acordar muito cedo, trabalhar durante o dia, ir à escola à noite. Além da bolsa para que estudem, os alunos também têm direito a transporte e alimentação sem custo. Mas a verdadeira motivação para ir à escola está em ter uma nova perspectiva de vida.
Fernando Frochtengarten:
Por conta da autoestima. A aprendizagem de saberes e práticas que favorecem a vida na cidade, numa sociedade letrada. E aí eu tô falando basicamente da leitura, da escrita e de saber desempenhar formas de oralidade adequadas a cada um dos espaços que as pessoas frequentam. Certamente, tem uma preocupação com a elevação da escolaridade, que, supostamente, vá levar a uma melhoria de trabalho e renda. A gente tem alguns alunos que tem projetos de continuidade da sua vida estudantil.
Felipe Bandoni:
Esse levar pra vida é muito mais imediato na EJA e muito mais revolucionário para a vida de uma pessoa do que para o ensino de crianças.
Música de fundo
Marcelo Abud:
A vida escolar para um jovem, um idoso, um migrante tem sentidos muito diversos, mas há um conjunto de motivações que os unem na busca de poderem exercer a cidadania em sua plenitude.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.