Erros conceituais marcam a tradução da obra do pensador Lev Vygotsky (1896-1934) no Brasil. Segundo a doutora em Educação e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Zoia Prestes, os textos do autor foram majoritariamente traduzidos do inglês para o português, em versões resumidas e editadas. “Elas desconsideraram o contexto em que foi escrita, após a revolução socialista russa, assim como seus fundamentos filosóficos e epistemológicos”, explica ela, que, junto da doutora em Psicologia e pesquisadora Elizabeth Tunes, dedica-se a traduzir os escritos diretamente do russo e tendo por base manuscritos originais.

“Vygotsky morreu em 1934, e a partir de 1936 até a morte de Stalin (1953), sua obra ficou proibida na União Soviética (URSS). Após isso, uma coletânea com alguns textos foi publicada e serviu de base para as traduções em inglês feitas nos Estados Unidos, que resumiram escritos importantes. Por exemplo, “Pensamento e fala” (traduzida como “Pensamento e linguagem”), foi reduzida de 400 páginas para 190 páginas. O capítulo dedicado a Jean Piaget (1896-1980) passou de 30 para 12 páginas”, exemplifica Prestes

Além disso, as traduções nos Estados Unidos foram marcadas pela popularização da teoria comportamental e pela Guerra Fria.

“Vygotsky se dedicou a compreender o papel do meio social no desenvolvimento humano, e isso tem forte relação com o contexto pós-Revolução Russa. Os norte-americanos tinham uma teoria cognitivista forte, mas não uma concepção histórico-cultural. Assim, ao comparar as traduções e cortes da versão norte-americana, percebe-se que foi retirada a base marxista e espinosista da obra e que houve uma tentativa de aproximá-lo das teorias de aprendizagem”, analisa Prestes.

“Vygotsky buscava entender o ser humano histórico, ou seja, em sua permanente transformação, na relação com a cultura e com o meio social, reconhecendo que somos transformados por ele. Ao modificar o meio, o ser humano transforma a si mesmo. Uma teoria que só foi possível porque ele viveu a Revolução e em um contexto diferente do que ocorreu nos Estados Unidos. Assim, ideologicamente, houve uma interferência intencional nas traduções norte-americanas”, aponta.

Ela também defende a grafia do nome de como Vigotski, com “i”. “’Vygotsky’ é a transliteração do sobrenome dele para o idioma inglês, e não para português”, justifica.

A seguir, Prestes analisa quatro conceitos cujos erros de tradução para o português impactam no entendimento da obra de Vygotsky.

Obutchenie

Prestes explica que o termo significa instrução e/ou ensino, mas foi traduzido como aprendizagem.

“A aprendizagem é um processo individual, e a instrução é uma atividade. Isso impacta a educação porque o foco de Vygotsky não era aprendizagem, mas o desenvolvimento e a atividade que promove o desenvolvimento. O autor afirma que a atividade impulsiona o desenvolvimento. Tanto que a palavra desenvolvimento aparece com mais recorrência em sua obra”, compartilha a tradutora.

Prestes destaca que o foco na atividade é algo que diferencia Vygotsky de Piaget, a quem ele estudou com profundidade.

“Piaget, resumidamente, porque esse teórico tem grande contribuições, colocava o desenvolvimento primeiro; depois, o fazer. Vygotsky, devido à sua base marxista, apontava que o desenvolvimento humano é impulsionado por uma atividade. Como se sabe, aprendizagem não é uma atividade, mas um processo individual que enxerga o conhecimento como fim, um resultado. Ao focar no desenvolvimento, Vygotsky entende o conhecimento como ferramenta cultural em uma atividade, que pode promover o desenvolvimento”, resume.

Zona Blijaichego Razvitia

Prestes defende a mudança na tradução do conceito zona de desenvolvimento proximal para zona de desenvolvimento iminente. O termo diz respeito, segundo a tradutora, “à dinâmica do desenvolvimento em que a criança, com ajuda, começa a dominar modos culturais do próprio comportamento, ou seja, a ter consciência. Para dizer que houve desenvolvimento é preciso que emerja algo novo por meio da colaboração, das relações de convivência estabelecidas entre as pessoas em atividade”, sintetiza.

Como o desenvolvimento humano é impulsionado por uma atividade, o professor, ao observar a criança, pode propor atividades que favoreçam ou impulsionem seu desenvolvimento.

“Isso pode fazer com que o desenvolvimento fique na iminência de ocorrer, mas não se configure como uma obrigatoriedade — o que se subentende da tradução como ‘proximal’”, explica a docente.

“Ou estamos em um nível real, daquilo que já dominamos e temos consciência, ou em um nível na zona de desenvolvimento iminente, que está na iminência de se desenvolver, mas não significa que vá obrigatoriamente acontecer naquele momento, imediatamente. Pensar assim é atribuir ao pensamento de Vygotsky uma perspectiva determinista. Ele jamais defendeu o determinismo; ao contrário, contrapôs sua teoria ao determinismo biológico. Por isso, para ele, desenvolvimento é uma possibilidade dada a todos sem distinção”, complementa.

Retch

Significa fala, mas foi traduzido como linguagem.

“Vygotsky não está preocupado com a linguagem em si, mas com o fenômeno humano da fala, que ele entende como uma função psíquica superior. Os animais têm linguagem, mas a fala está inserida dentro da linguagem e é exclusivamente humana”, explica Prestes.

“Funções psíquicas superiores são aquelas com as quais não nascemos; elas emergem na relação com a cultura no processo de desenvolvimento”, complementa.

Prestes esclarece que a fala, como qualquer outra função psíquica superior, desenvolve-se seguindo a “lei geral de desenvolvimento”, apresentada por Vygotsky.

“Inicialmente, se apresenta como ‘categoria interpsiquica’ do comportamento, ou seja, como resultado de comportamento coletivo”, explica. Isso significa que é uma fala para o outro, externalizada e com função comunicativa.

Posteriormente, no processo de seu desenvolvimento, a fala se apresenta como “categoria intrapsíquica”, que é um comportamento interno e individual.

A professora ilustra: “A fala surge como a função de controlar o comportamento do outro, principalmente da pessoa próxima à criança que convive com ela, podendo comunicar algo que a incomoda ou para fazer um pedido. Pouco tempo depois, em seu processo do desenvolvimento, a criança começa a empregar a fala para o controle do seu próprio comportamento, quando fala consigo mesma e descobre que a fala pode colaborar com suas ações. Trata-se, inclusive, na terceira pessoa; por exemplo, dizendo: ‘agora Maria vai fazer isso’”, ressalta.

“É uma etapa transitória até que a fala passe para o plano interno, individual, que dá origem ao pensamento verbal”, resume Prestes.

“Como Vygotsky também vai abordar a linguagem, em certos momentos de seus escritos é preciso diferenciar os momentos em que ele aborda uma e outra no processo de tradução”, diz Prestes.

Igra

Foi traduzida como brinquedo, mas o correto é brincadeira. “Ou seja, ele fala de uma atividade, não de um objeto. A criança pode inclusive brincar sem brinquedo”, diferencia a pesquisadora.

Entre os equívocos, a professora aponta o livro “A psicologia da brincadeira e do jogo”, do ex-aluno de Vygotsky Daniil B. Elkonin, baseado em uma palestra dada pelo pensador russo, que foi traduzida no Brasil como “A psicologia do jogo”.

“Não houve preocupação do tradutor em diferenciar quando o autor falava de um e de outro”, diz.

Segundo Vygotsky, o jogo envolve regras explícitas. Ao falar de brincadeira, trata-se do faz de conta, com regras ocultas, e a criança se sente livre para imaginar e criar, passando a ter consciência das regras sociais.

“Ao brincar de mãe, a criança cria o personagem com liberdade, combinando os mais diversos elementos. É uma reprodução criativa, mas as regras do comportamento da mãe não estão explícitas, estão ocultas, e na brincadeira a criança se conscientiza dessas regras”, afirma.

“No jogo, a primeira coisa que se precisa saber são as regras. Sem regras não se joga xadrez, por exemplo.”

Indicações de bibliografia

Para quem deseja se aprofundar na obra do autor, Prestes recomenda evitar as traduções em português de “A formação social da mente” e indica “Psicologia Pedagógica”, da Editora Artmed, traduzida por Cláudia Schilling (2003) do espanhol. Além disso, ela recomenda a sua tese publicada em livro, “Quando não é quase a mesma coisa: traduções de L. S. Vigotski no Brasil”, e os livros e artigos em parceria com Elizabeth Tunes, entre eles: “Imaginação e a criança na infância”, “Problemas da defectologia: Volume 1” e a coletânea “Psicologia, Educação e Desenvolvimento”, todos publicados pela Editora Expressão Popular, além de “Sete aulas de L. S. Vigotski sobre fundamentos da pedologia” (Editora E-papers).

Veja mais:

Descubra 4 filmes para conhecer a vida e a obra de Lev Vygotsky

Pensadores na Educação: Vygotsky e o desenvolvimento a partir da cultura

Pensadores na Educação: Piaget e o olhar para o início da vida

Pensadores na Educação: Paulo Freire e a educação para mudar o mundo

Crédito da imagem: Marco VDM – Getty Images

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