Falecido em 4 de janeiro de 1988, o cartunista e jornalista Henfil deixou como legado um humor inteligente, reflexivo e de forte crítica social. Sua produção, que atingiu o auge nos anos 70 e 80, utilizou a sátira para denunciar as violações ocorridas durante o regime militar brasileiro (1964-1984) e também a fome que assolava a região Nordeste na ocasião. Por esse motivo, pode ser utilizada nas aulas de história e geografia.
“Além disso, suas tirinhas tratam de temas que, infelizmente, ainda são atuais, como corrupção e a defesa da democracia”, explica o professor de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF) Márcio Malta. Ele é autor do livro “Henfil: o humor subversivo”.
Qual foi a importância do Henfil para o Brasil e para as artes?
Márcio Malta: O Henfil foi um cartunista que deixou um legado pautado em temas sociais e na preocupação com os rumos do país. Uma palavra que define sua obra é engajamento, ou seja, a preocupação em fazer um humor que levasse a uma reflexão da sociedade, não o humor pelo humor.
Quais as principais características da sua obra?
Malta: Henfil era conhecido pelo traço rápido e seus personagens tinham como característica a agilidade. Outro ponto é a reflexão. O que ele retratava não era a realidade dada, havia sempre algo a pensar. Tentava contribuir, por meio do seu trabalho, com o cenário político e social. Por fim, a reflexão que propunha não era apenas referente à política, mas também em termos comportamentais. Como produziu nos tempos da censura da ditadura, os costumes eram um prato cheio para a sua obra.
Quais são os seus personagens principais e o que eles debatiam?
Malta: São mais de 30 personagens, mas cito o trio composto pela Graúna, o bode Francisco Orellana e o cangaceiro Zeferino. Ele retrava a caatinga e a fome, mostrando um olhar para essas questões a partir do Nordeste, não do “Sul Maravilha”, como chamavam o Sudeste.
Ubaldo, o paranoico, era um personagem que surgiu quando a ditadura militar começava a se abrir. Ex-militante contra a ditadura, ele tinha mania de perseguição e medo de tudo. O que o Henfil queria dizer com esse personagem era que não precisávamos mais temer. Ao satirizar o medo, ele desmontava essa estratégia de poder utilizada pela ditadura.
Os fradinhos Baixim e Cumprido – nomes inspirados no regionalismo mineiro – tinham uma tônica forte de debater os costumes. Como a censura não permitia o uso de palavrões, eles usavam palavras cifradas e termos divertidos.
Por fim, o personagem operário Orelhão falava sobre as preocupações com o custo de vida e mostrava também um olhar que não era das grandes lideranças, mas do povo. Uma das falas do Henfil, aliás, era essa: “eu quero ser a mão do povo desenhando”.
Quão contemporâneas ainda são as discussões que o Henfil trazia em sua obra?
Malta: um dos principais elementos da sua obra é a defesa da democracia, da liberdade e da participação do povo. O Henfil dedicou boa parte da sua vida à defesa do voto direto e da participação popular. E vivemos um momento de ataques à democracia e ao voto direto no Brasil e na América Latina, assim como da relativização das violações cometidas pela ditadura militar no país. Outro ponto é que temas como dengue e corrupção eram e ainda são recorrentes no noticiário da política nacional.
Como as tirinhas podem ser utilizadas nas aulas de geografia?
Malta: O Henfil tinha uma preocupação em ambientar suas tirinhas. No trio do Nordeste, por exemplo, a caatinga e o clima semiárido são bem ambientados, apesar dos traços simples, que eram a marca do cartunista. Além disso, há a questão da geografia política, pois a Graúna, o Bode e o cangaceiro Zeferino falavam sobre as consequências da fome e o reflexo das ações feitas por políticos que deixavam o povo à deriva. “Será que no Sul Maravilha eles comem todos os dias”, questionava uma tirinha que, por contraste, denunciava as desigualdades. Além disso, a abordagem da fome era feita de forma doce e singela. Em uma das tirinhas, a Graúna perde uma das suas crias pela fome. Vemos o filhote da ave “aprendendo a voar” quando, na verdade, é seu espírito que está indo para o céu.
E nas aulas de história?
Malta: Às vezes, o professor pode ter dificuldade em fazer os alunos compreenderem a complexidade do período da ditadura. Quando o Henfil trata temas como a Diretas, Já ou a “Lei Falcão” (em que candidatos às vagas no Executivo e Legislativo só poderiam aparecer nas propagandas em ambiente de estúdio, nunca em locais públicos), ele usa recursos emocionais para envolver o leitor, que pode rir ou ficar com raiva. Esse uso das emoções é um recurso didático e pedagógico importante para o aluno entender o período. Vale ainda lembrar que o cartunista não estava desconectado do seu tempo e fazia parte de um grupo de outros artistas que se manifestavam contra a ditadura. Ele integrava, por exemplo, o expediente do jornal “O Pasquim”. Toda vez que o governo militar lançava uma propaganda ou ação, os cartunistas se reuniam para pensar uma forma de denunciá-la por meio da sátira.
Você indica alguma tirinha específica?
Malta: A primeira, que aparece com frequência em vestibulares, é o trio do Nordeste procurando a esperança. Um sobe no ombro do outro e, depois, se entreolham, pois a esperança está em nós. Henfil, com seu humor subversivo, diz: “será que entenderam?”. Outra tirinha é sobre a lei da Anistia, quando um personagem diz para um caixão “Vlado, saiu a lei da anistia!”. Faz referência ao jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura e cujo crime ficaria impune. É uma tirinha importante quando há candidatos à presidência que relativizam o que aconteceu na ditadura militar.
É comum encontrar na internet conteúdos feitos por outras pessoas que usam o personagem Graúna para discutir temas políticos. Como o professor pode checar se a tirinha é ou não do Henfil?
Malta: A escrita nas tirinhas do Henfil é caligráfica, ou seja, eram escritas à mão pelo autor. Se o texto tiver uma escrita que lembra as utilizadas por computador, certamente é uma reformulação.