Sentada no sofá da sala de seu apartamento em Porto Alegre, a educadora Léa Fagundes, após três horas de entrevista ao Instituto Claro, aponta para as fotos que decoram o ambiente. Família grande. Sete filhos, quinze netos. Professora desde a adolescência, ela afirma que nunca teve a “paciência esgotada” por lidar com tantas crianças ao longo da vida: alunos, filhos e, mais tarde, os netos. Pelo contrário, sempre se sentiu uma privilegiada por poder entrar no mundo deles e tentar entendê-los. Como revela a sua trajetória, esse desafio de entendê-los foi dos mais bem sucedidos.

Reconhecida no Brasil como um dos ícones da educação ativa, que defende o aluno como um ser construtor e capaz de desenvolver o seu próprio currículo, livre de disciplinas pré-estabelecidas, as convicções de Léa, atreladas ao uso da tecnologia, ecoaram. Das escolas de periferia ao Ministério da Educação (onde é assessora de Educação a Distância), a psicóloga graduada pela UFRGS, mestre em Educação pela mesma instituição e doutora pela USP em psicologia circulou defendendo a epistemologia genética, teoria do suíço Jean Piaget que define o conhecimento como a resultante da interação do sujeito com o seu o meio. Abaixo, confira a entrevista, onde ela fala da sua formação, da educação no Brasil e do projeto com laptops que coordena em Porto Alegre, o qual se tornou referência no país.

A senhora é crítica ferrenha do atual modelo de ensino predominante. Mas sempre foi assim, desde que começou a lecionar? 

Eu dei aula pela primeira vez na vida aos 10 anos, para uma mocinha de 15. Mas aos 15, eu já dava aulas a um grupo de meninos de rua, era alfabetização mesmo. Toda a minha vida eu trabalhei com crianças que tinham dificuldade de aprendizagem, e a primeira questão que me desafiou foi a seguinte: essas crianças têm dificuldades e são pobres, mas os pobres são menos inteligentes? Eles não podem mesmo aprender da mesma forma que uma criança que tem conforto material, boas condições de vida? Passei a vida pesquisando isso e hoje respondo que, se a criança, mesmo pobre, tem saúde – e não tem lesões ou traumas – ela tem o mesmo potencial para se desenvolver. Na aprendizagem, independentemente da classe social, o que as crianças precisam é de espaço para mostrar o lado criativo, para formar o senso crítico, e, a partir daí, construir o seu conhecimento com os pares, agregando tudo o que eles compartilham. Na escola da era industrial não temos isso.

Fábio Alt

Durante entrevista, educadora sugere a leitura de “Homo Zappiens, educando na Era Digital”

E por que é difícil tornar a escola mais criativa e mais aberta para a produção dos alunos?

Porque o modelo de escola que temos foi construído sobre o Behaviorismo, que prega a resposta a estímulos. Nele, o ensino é todo programado e os objetivos operacionais são definidos com antecedência. Mas veja só, essa teoria nasceu da observação de animais. Funciona com coelhinho, cachorro. Diz respeito à inteligência de animais! Animais não têm função semiótica, que é a capacidade de criar símbolos e se expressar em linguagens. No entanto, isso foi incorporado à escola e, como se sabe, a resistência a mudanças estruturais é sempre grande. Além disso, por um período, foram poucos os que perceberam que seria necessário mudar, pois como a escola, mesmo a pública, era para a classe média nos anos 60, 70, então não ficava evidente a dificuldade de aprendizagem sob esse modelo, pois uma criança que tem conforto, estrutura familiar, acesso a bibliotecas, aprendia em qualquer lugar. Agora, quando se começou a pensar em educação para todos, começou o fracasso do ensino no país. Então veio a minha segunda questão: o professor de classe média trata criança com todos valores e os padrões de conhecimento da classe média.

E qual é o impacto negativo disso na educação pública?

As crianças das favelas, das vilas, não têm sequer a sua linguagem aceita. Para elas, a forma como tudo lhes é apresentado fica muito distante das suas realidades. Então, cria-se aquele abismo enorme na aprendizagem. De um lado, um professor que passa tarefas, exercícios e mais exercícios esperando que a criança aprenda tudo o que ele tem a ensinar. Não existe espaço para a curiosidade, para a criança poder levar o seu mundo real à escola. Volto a dizer: é a escola da era industrial. Tudo programado. As habilidades são ensinadas para o “sistema” funcionar. Mas as pessoas com vivências diferentes têm percepções distintas. E elas têm que ser incentivadas a desenvolverem as suas próprias habilidades.

A senhora sempre defendeu o desenvolvimento dessas habilidades com a tecnologia?

Desde os anos 60, quando eu estava ligada aos conceitos de Piaget, comecei a observar também a linguagem LOGO, desenvolvida por Seymor Papert [professor de matemática da África do Sul, “discípulo de Piaget] no MIT [Massachusetts Institute of Technology], e vi que aquele era um caminho, pois a tecnologia podia transformar a aprendizagem, e a linguagem que ele propunha possibilitava descobertas aos alunos. Passamos a trabalhar com LOGO no Laboratório de Estudos Cognitivos, na UFRGS, do qual fui uma das fundadoras, há 30 anos, e onde estou até hoje coordenando trabalhos e orientando bolsistas.

E qual era a sua proximidade com o Seymor Papert? Foi através dele que a senhora teve acesso aos computadores do programa OLPC (One Laptop for Child), desenvolvidos com a tecnologia do MIT?

Eu fiz dois congressos internacionais aqui em Porto Alegre, em 1985 e em 1995. Trouxe o Papert e ele foi o presidente de honra dos congressos. A gente tinha muita comunicação. Eu estudava Piaget e fiquei encantada com a linguagem LOGO e o Papert, por sua vez, tinha dificuldades, lá nos EUA, de encontrar quem conhecesse o Piaget, que nunca estudou inglês, só francês. O Papert não tinha psicólogos americanos que estudassem a epistemologia genética e, muito menos, professores. Então nós conversávamos bastante, mas o meu acesso ao OLPC foi uma caminhada longa. O Ministério da Educação, aqui no país, embora viesse há algum tempo estudando a ideia do projeto, não me envolveu nisso. Os pesquisadores do Media Lab, o laboratório multimídia do MIT, conversaram com o governo ainda em 2005, mas só tivemos computador na escola Luciana de Abreu em 2007 [a escola modelo do projeto no RS]. Eu conhecia o pessoal do Media Lab, inclusive o Nicholas Negroponte, o coordenador. E tudo isso influenciou para que o Cesar Alvarez, coordenador de inclusão da presidência da República, terminasse me chamando para uma reunião que discutiria esse projeto do computador de U$ 100. Lá, eu bati o pé por 10 laptops que haviam sido trazidos para o Brasil para testes. Foi assim que eles chegaram na escola Luciana de Abreu. Os meus alunos bolsistas testaram e disseram que era tudo o que havíamos sonhado.

Fábio Alt

“Tem professor que ainda diz que eu quero enfiar computador goela abaixo. Isso me deixa chateada”

E o entusiasmo na escola foi geral?

Dos alunos, sim. Fizemos quatro oficinas e uma delas foi com os alunos. Eles entenderam o que poderiam fazer com aquele computador e amaram. Eles aprendem tudo muito rápido e sem nenhum professor ensinar. Uma criança ensina para a outra e eles deslancham. Mas sabe que tem gente, professor mesmo, que ainda diz que eu quero enfiar os computadores goela abaixo? Isso me deixa chateada. Tem professor que reclama quando ao aluno sai da aula, diz que os meninos não podem perder aquele conteúdo. Isso me deixa “doente” (risos).

A senhora diz que os alunos ensinam uns aos outros, navegam. Mas eles precisam aprender as diretrizes desse processo com os professores, certo?

Não, não.. Isso é coisa da sociedade industrial. Isso é coisa dos currículos, das faculdades, está tudo estruturado assim. Mas não existe pré-requisito. Se a criança quer fazer uma coisa, ela descobre. E como é que descobre? Interagindo com os pares. Professor tem que ser formado pra entender como é que o cérebro funciona e como se desenvolve a inteligência. Como se desenvolve o processo de aprendizagem. Mas a faculdade ainda ensina métodos de ensino, como fazer um currículo, como fazer um programa. Tudo nas coordenadas cartesianas.

E como mudar essas coordenadas nas faculdades?

Entendendo que o importante é deixar a criança fazer, descobrir, e deixar também o professor descobrir junto com ela. Isso é a escola ativa. Isso exige confiança na criança.

No programa “Um computador por Aluno” da escola Luciana de Abreu como essa confiança é exercida?

É algo intrínseco. Sempre damos voz às crianças, elas pesquisam aquilo que lhes interessa, fazem projetos, levam o computador para casa e compartilham aquilo com familiares, com a comunidade.

Vocês não tiveram casos de perda, roubo de laptops?

Tivemos raríssimos casos de perda, que não chegaram a 3%. Eles são muito cuidadosos. Tornam-se cuidadosos quando sabem que são eles os autores, os responsáveis pelo trabalho que desenvolvem. Tinha uma mãe com cinco laptops em casa, pois tinha cinco filhos na escola. Tinha uma avó que me perguntou se a neta dela podia ensiná-la a ler com aquele computador. Então você observe a importância de eles terem essa confiança. Podem trocar, promover essa inclusão que poderá ter como consequência um maior uso crítico da tecnologia. Inclusive agora estamos tocando o projeto de uma agência de notícias, para potencializar isso.

A senhora tocou numa outra questão. Observamos que, mesmo quando instituições se propõem a usar a tecnologia na educação, muitas vezes não há essa preocupação com a postura crítica.

Sabe quem faz isso? Portais das empresas editoras. Eu examinei 30 portais. Tudo lixo. Os funcionários do Ministério da Educação, mesmo graduados em pedagogia, não entendem quando a gente diz isso, que aqueles portais são ruins. “Mas como pode, professora Léa? São tão bonitinhos, com musiquinha. Tudo colorido”. Desse jeito, não se promove mudança. Não adianta ser lindo, caprichado, se a criança não pode construir nada naquele ambiente.

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