Num armário da Escola Municipal Ulysses Guimarães, em Belo Horizonte, 13 câmeras fotográficas analógicas. Por meses, permaneceram ali sem uso, sem relação com os alunos ou com o dia a dia da escola. Poderiam estar lá até hoje. Poderiam ser mais um exemplo de como as instituições de ensino muitas vezes deixam passar despercebidos instrumentos que têm potencial de transformação se forem associados a bons projetos. Mas as tais câmeras, atualmente, estão fora do armário. Duas vezes por semana são levadas por “fotógrafos aprendizes” às ruas e ruelas que formam o Aglomerado Santa Lúcia, mais conhecido como Morro do Papagaio, lugar em Belo Horizonte que agrega cerca de 35 mil pessoas e uma imensa favela urbana.

 

Gabriel – “Meu Morro Meu Olhar”

 

Foi o olhar sensível de uma professora que encontrou utilidade para as câmeras e ajudou a construir uma relação entre aquela tecnologia “antiga”, o mundo real e os ambientes virtuais. Com o projeto “Meu Morro, Meu Olhar”, a bolsista Aline Guerra, estudante do 7º período de Licenciatura em Artes Plásticas na Universidade do Estado de Minas Gerais, transformou parte das suas aulas de artes na escola Ulysses Guimarães em momentos de ricas descobertas para os 17 alunos que passaram a ter aulas teóricas e práticas sobre fotografia.

 

Carolzinha – “Meu Morro Meu Olhar”

 

Em parceria com Jorge Quintão Júnior, fotógrafo profissional que topou ser voluntário no projeto e contribuiu na formatação do mesmo, ela abraçou o desafio de ampliar as percepções daqueles estudantes – todos moradores do Morro do Papagaio – sobre o lugar onde vivem e somá-las à inclusão digital. “Parte do que eles produzem, usamos para alimentar o site do projeto. Lá, além de cada um ter a sua própria galeria, com algumas das melhores fotos registradas nas aulas, ainda temos diário, livro de visitas, e isso faz com que eles trabalhem os textos não apenas na nossa aula, mas também na aula de português”, conta Aline Guerra.

 

Carol – “Meu Morro Meu Olhar”

 

A diretoria da Ulysses Guimarães, participante do programa Escola Integrada, o qual é promovido pela Prefeitura de Belo Horizonte com a proposta de estimular os professores a extrapolarem com as suas turmas os muros da escola, foi receptiva à iniciativa da professora de artes e, há quatro meses, assiste ao engajamento dos estudantes. Ana Carolina Martins, 11 anos, é uma das que compõem o grupo e que vem redescobrindo o seu bairro. “Eu estou adorando e já sei que perto da minha casa tem muita coisa interessante”, diz a menina antes de afirmar que, depois que começou a fotografar, o Morro ficou mais brilhante. “Antes era feio, cheio de tiros”, diz a menina, que se refere aos tiroteios que, não raramente, acontecem no Morro do Papagaio, onde gangues costumam se enfrentar. “Não é que a fotografia tenha mudado o lugar, mas os alunos foram estimulados a enxergar mais coisas”, pondera o professor Jorge Quintão.

 

Com a mesma idade de Carolina, João Paulo Almeida, outro aluno, destaca não apenas a mudança do seu próprio olhar, mas o efeito que ele acredita que a ação do grupo vem causando na comunidade e até fora dela. “As pessoas pensavam que aqui só tinha gente feia, que aqui era um lugar sujo, e estamos ajudando a mudar isso”, fala com propriedade o garoto que vivencia, junto aos colegas do projeto, a experiência de ser autor de uma exposição. Desde o dia 8 de julho, 17 fotos dos jovens compõem “Meu Morro, Meu Olhar – O Olhar das Crianças sobre o Morro do Papagaio”, mostra de fotos que segue até o final do mês no Café das Letras, reconhecido espaço cultural da capital mineira.

 

Para saber mais

    • Conheça o site e o Twitter do “Meu Morro, Meu Olhar”.

 

“Vamos fazer outras ainda neste ano, inclusive uma lá na comunidade”, avisa, entusiasmada, Mariane Ribeiro, 14 anos. Segundo a adolescente, que adora fotografar paisagens, a mãe dela, que sempre procura saber sobre o projeto, está esperando a segunda exposição para conhecer a produção dos jovens. “Percebemos que eles se sentem um tanto intimidados em ir ao Café com Letras, mas a nossa intenção é levar a produção dos meninos ao maior número de pessoas”, diz a professora Aline, que já projeta uma terceira exposição na rodoviária e uma quarta no Cefet-MG (Centro Federal de Educação Tecnológica). Ela revela que esses lugares se mostraram interessados pela produção artística que coordena.

 

Mesclando tecnologias

 

As aulas teóricas, apesar de contarem com pesquisas na internet, avaliação de fotos produzidas e dicas técnicas, não são as preferidas dos alunos. Eles se sentem mais atraídos por estar com as câmeras na mão, descobrindo ângulos de paisagens e personagens. O que talvez tenha mais a ver com a inquietude dos jovens. Porém, de posse das máquinas, os estudantes são levados a pensar em tudo o que aprenderam nas “conversas em sala”. Com as câmeras analógicas, por exemplo, eles têm um limite de fotos. “Tem a questão do filme, da revelação, isso tudo gera custos. Mas essa limitação de fotos por aluno tem o seu lado bom, pois falamos da importância de eles pensarem bastante antes de clicar, o que devem procurar observar. Percebemos que realmente tentam caprichar para não perder a foto”, avalia o fotógrafo-professor Jorge Quintão.

 

Jorge Quintão

Alunos do projeto “Meu Morro Meu Olhar”

 

O professor revela que ficou surpreso quando começou a usar as máquinas digitais que a escola Ulysses Guimarães providenciou junto à prefeitura dois meses após o início do projeto. Segundo ele, a qualidade das fotos caiu muito. “Teve aluno que tirou mais de 400 fotos numa saída, pois não tinha mais a limitação. Isso foi assunto para mais uma aula. Aí eles tiveram de entender que o uso da técnica vale mesmo quando estamos com uma digital, embora seja tão prático fotografar tendo à disposição aquela tecnologia.”

 

Para passar um pouco da técnica que domina, Jorge também utiliza como referência nas aulas outros fotógrafos que já exploraram as comunidades pobres, como as favelas, com as suas lentes. Leva imagens e pede para que os jovens tentem imaginar como era aquele lugar onde as fotos foram feitas, qual a luz que o fotógrafo pode ter usado, qual a lente etc.

 

Indicações do projeto “Meu Morro, Meu Olhar”

 

Com a metodologia, que vem dando resultado ao conseguir fazer com que os jovens pensem e redescubram a sua comunidade, o “Meu Morro, Meu Olhar” já desperta atenção. Há outras escolas dispostas a implementar o projeto. “Sei que fotografia em escola não é exatamente uma novidade, mas diferenciamos o projeto quando criamos um ambiente virtual e não nos desligamos do real, fazendo exposições, por exemplo”, diz Aline.

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