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Uma das novidades na lista da Unicamp, “Olhos D’Água” tem como base textos que foram publicados pela primeira vez em 1990, na série de antologias “Cadernos Negros”, editada pelo coletivo Quilombhoje. Vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria Contos, em 2015, o livro se utiliza do conceito que Conceição Evaristo chama de “escrevivência”, escrita originada das lembranças e vivências da própria autora e de sua condição em uma sociedade machista e racista.

“A maior parte dos personagens são justamente homens, mulheres, crianças que têm essa experiência de serem afro-brasileiros e que, uma literatura canônica, quando nos representa, nos representa ainda de uma forma muito estereotipada ou animalizada”, analisa.

Conceição Evaristo, autora de Olhos d'água
Conceição Evaristo, autora de Olhos d’água (crédito: divulgação/Joyce Fonseca)

A propriedade para escrever faz com que a autora tenha uma perspectiva de quem vê a história do lado de dentro. “Quando eu escrevo como uma doméstica, eu não sou aquela patroa que, da porta do quarto, olha a empregada. Eu posso dizer que eu sou a própria empregada que estou procurando me escrever nesse texto”, conta.

Em “Olhos d’água”, a escritora relata a situação de pessoas do povo e aborda, com poesia, mas sem meias palavras, temas como pobreza e violência urbana. Para a doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e professora de língua portuguesa no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) Fabiana de Pinho, no entanto, o mais relevante é a humanização que Evaristo traz às personagens.

“Eu vejo muito, assim, como um tema o afeto, o desejo de viver, a questão da cidade – como que a gente entende a cidade a partir desse livro ‘Olhos D’Água’?’. O conto ‘Maria’ se passa num ônibus. É uma empregada doméstica durante o deslocamento pela cidade”, exemplifica a professora.

No áudio, Conceição Evaristo lê um trecho do conto que dá título à obra e Fabiana de Pinho analisa outros aspectos da “escrevivência” da escritora.

Veja mais:

Acompanhe aqui a versão original do conto ‘Olhos D’Água’

Ouça o Momento Literafro em que Conceição Evaristo lê o conto de improviso

Entenda melhor o que é a “escrevivência” na obra de Conceição Evaristo

Transcrição do Áudio

Música: “Djansa”, de The Mini Vandals featuring Mamadou Koita and Lasso, fica de fundo

 

Conceição Evaristo:

Tanto a escolha temática do texto não literário como aquilo também que eu elejo para fazer literatura, tudo isso é profundamente marcado pela minha subjetividade, que é a experiência vivida pelos africanos e seus descendentes no Brasil. Porque cada personagem – lavadeira, criança perdida –, na verdade, eu consigo trazer a humanidade desses personagens pro texto.

Fabiana de Pinho:

Então eu vejo o ‘Olhos D’Água’, né, como um livro que fala de humanização – humanização de pessoas, humanização de personagens negros, humanização de modos de ser, humanização de existências.

Meu nome é Fabiana de Pinho, sou doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e professora de língua portuguesa no IFRJ, aqui no Rio de Janeiro.

 

Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história

 

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

 

Marcelo Abud:

A literatura de Conceição Evaristo tem na experiência de vida da própria escritora as bases para textos que tratam da condição de afrodescendentes no Brasil. A essa escrita do cotidiano, Evaristo dá o nome de ‘escrevivência’.

Conceição Evaristo:

A maior parte dos personagens são justamente homens, mulheres, crianças que têm essa experiência de serem afro-brasileiros e que, uma literatura canônica, quando nos representa, nos representa ainda de uma forma muito estereotipada ou animalizada.

Fabiana de Pinho:

Ainda que as literaturas que tiveram mais visibilidade, ao longo da história do sistema literário brasileiro, aloquem pessoas negras de uma maneira estereotipada, no ‘Olhos D’Água’, por exemplo, a presença do modo como a Conceição trabalha com o gênero feminino se comunica muito comigo, principalmente porque eu não faço uma leitura do livro apenas na chave de leitura da violência, mas na chave de leitura do humano.

Conceição Evaristo:

E aí esses personagens são construídos de uma outra perspectiva, né, de um olhar de dentro. Porque eu digo, quando eu escrevo como uma doméstica, eu não sou aquela patroa que, da porta do quarto, olha a empregada. Eu posso dizer que eu sou a própria empregada que estou procurando me escrever nesse texto.

 

Música: “O Pobre e o Rico” (Carolina Maria de Jesus)

É triste a condição do pobre na terra

Rico quer guerra

Pobre vai na guerra

Rico quer paz

Pobre vive em paz

Rico vai na frente

Pobre vai atrás

 

Som de página de livro sendo virada

 

Marcelo Abud:

Além da humanização dos personagens, Fabiana de Pinho cita o que mais pode ser visto como tema recorrente no livro e em toda a obra de Conceição Evaristo.

Fabiana de Pinho:

Eu vejo muito, assim, como um tema o afeto, o desejo de viver, a questão da cidade – como que a gente entende a cidade a partir desse livro ‘Olhos D’Água’?’. O conto ‘Maria’ se passa num ônibus. É uma empregada doméstica durante o deslocamento pela cidade.

Não por acaso esse livro começa com ‘Olhos D’Água’, a questão dos afetos, né, das emoções. Essa busca pela cor dos olhos da mãe. Então um outro ponto aqui é a maternidade, né? Como a maternidade aparece nesse livro e aparece como produção, produção de vida. E aí a gente pensar maternidade não só no sentido de gerar uma criança, mas no sentido de gerar desejos, gerar sonhos, gerar projetos.

Conceição Evaristo:

É um conto em que eu trago uma ambiência familiar negra – mãe e suas filhas – e trabalho também com o mito das religiões de matrizes africanas.

 

Som de página de livro sendo virada

 

Marcelo Abud:

Em participação no Momento Literafro, levado ao ar pela Rádio da Universidade Federal de Minas Gerais, Conceição Evaristo gravou o conto que dá título ao livro. Ao autorizar a veiculação de um trecho da leitura que você vai acompanhar aqui, o coordenador do Grupo Literafro, professor Eduardo de Assis Duarte, ressalta que esta versão foi feita a partir da memória da autora, sem ler o texto original no livro, o que valoriza a tradição oral do conto.

Conceição Evaristo:

Havia uma brincadeira preferida que era feita principalmente nos dias de pouco ou nenhum alimento. Era a brincadeira em que a mãe era a rainha. Ela se assentava num banquinho de madeira, que era o seu trono, nós pegávamos flores que davam em volta do nosso barraco e as flores eram colocadas nos cabelos, nos braços, no colo de mãe. Em volta dela, nós dançávamos, brincávamos, corríamos… E havia um momento em que nós deitávamos no chão e batíamos cabeça para a grande rainha. A mãe só ria, um sorriso triste, molhado… Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

Fabiana de Pinho:

A gente tem um tema aqui que é a questão da orixalidade também, né? Porque esses olhos d’água, esses olhos que choram águas de Mamãe Oxum.

Conceição Evaristo:

Porque o que que acontece, por exemplo, se você lê um texto que tem um mito grego, um mito judaico-cristão, ou você já conhece esse texto ou, então, você busca conhecimento desse mito para poder ampliar a sua compreensão do texto, né? Eu acho que ‘Olhos D’Água’, – acho não – esse conto ele traz um mito que as pessoas vão entender o conto, mas se elas buscam nas culturas africanas a origem desse mito a compreensão do texto vai ser muito maior.

Fabiana de Pinho:

A Conceição Evaristo tem todo um estudo sobre o espelho de Oxum. Então, não é por acaso, né? E tem uma outra questão que eu gosto de trazer – eu gosto muito de ler prefácio – a gente tem um prefácio da Heloisa Toller Gomes e a introdução da Jurema Werneck. E aí é inegável citar aqui, né, um fragmento da introdução da Jurema Werneck, da médica negra Jurema Werneck, em que ela diz o seguinte:

‘Neste livro encontrei outra vez Caliban ocupado em muitas subversões. Era Iyalodê, a que fala pelas mulheres que não podem falar, contando, dizendo, amaldiçoando. Era Oxum, às portas da casa de Oxalá, amaldiçoando a pobreza e a injustiça que recaía sobre as mulheres’.

 

Música: Mamãe Oxum (André Luiz Oliveira / Costa Netto), com Jane Santos

Oh! Minha Oxum… Não deixa de cuidar de mim!
Momento algum!

Yá Lodê, Olô Mi Mã,Olô Mi Má Yó.
Yá Lodê,Yá Lodê Yá.
Yá Lodê, Olô Mi Mã,Olô Mi Má Yó.
Yá Lodê, Yá Lodê Yá

Yá Yá

 

Fabiana de Pinho:

Então eu penso que ler este livro é necessário e uma importante oportunidade estética, né, para o letramento estético, letramento literário. Porque o sistema literário, historicamente, ele restringe, e alunos e aluna eles têm esse direito. Nós temos o direito à leitura e alunos e alunas, também. Então eu penso que são exercícios estéticos muito interessantes e que a gente precisa ter contato com eles. É um convite de entrada na estética de Conceição Evaristo, que é uma grande intelectual brasileira…

 

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

 

Marcelo Abud:

A origem do premiado livro ‘Olhos D’Água’ está na publicação dos primeiros contos de Evaristo, publicados em 1990, nos Cadernos Negros, série de antologias editada pelo coletivo Quilombhoje. De lá pra cá, a escritora tem feito da palavra um instrumento para representar pessoas que ainda hoje costumam ter suas vozes pouco ouvidas na sociedade brasileira.

Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

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