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Na obra ‘Bons Dias’ , o lado cronista de Machado de Assis aparece por meio de uma linguagem coloquial, marcada pelo bom humor e ironia característicos do escritor. No entanto, para entender o que foi escrito entre abril de 1888 e agosto de 1889 no jornal Gazeta de Notícias, é preciso estudar o contexto.

“Machado flagra um período da história brasileira de muita efervescência. Nós estamos na passagem do império para a república; de uma sociedade da escravidão para a abolição. E ele mostra uma visão muito interessante desse período da nossa história”, resume o professor de literatura do Anglo Vestibulares Fernando Marcílio, ouvido nesta edição do podcast Livro Aberto.

Na época em que escreveu as crônicas de ‘Bons Dias’, Machado não as assinou. Em vez disso, criou um personagem, o relojoeiro chamado Policarpo. “Nós estamos diante de um personagem que tem no seu círculo de amigos gente da elite carioca. A perspectiva a partir da qual ele fala é uma perspectiva da elite. Não pra assinar embaixo dessa perspectiva, mas para denunciar os vícios dela”, conclui o professor.

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Transcrição do Áudio

Música: “A Paz” (Francisco Braga), com Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense, fica de fundo

Fernando Marcílio:
Foi uma série de crônicas que o Machado escreveu chamada “Bons dias”, ao longo de cerca de um ano: de cinco de abril de 1888 até 29 de agosto de 1889. É um total de 49 crônicas. O Machado flagra um período da história brasileira de muita efervescência, né, nós estamos na passagem do Império para a República; nós estamos na passagem de uma sociedade da escravidão para a Abolição. É com esse momento que ele está dialogando e ele mostra uma visão muito interessante desse período da nossa história.
O meu nome é Fernando Marcílio, professor de literatura há mais de trinta anos, no sistema Anglo de ensino. Atualmente também sou autor do material de literatura do sistema para pré-vestibulares e para ensino médio.

Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história

Som de página de livro sendo virada

Música: “A Paz” (Francisco Braga), com Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense, fica de fundo

Marcelo Abud:
O livro “Bons Dias” mostra o lado cronista de Machado de Assis. A linguagem coloquial nos transporta por um texto bem humorado e, claro, com a tradicional ironia que marca a obra do escritor.

Fernando Marcílio:
A crônica é o gênero que por si só supõe um narrador, um enunciador, que se dirige ao seu leitor de maneira bastante amigável, como se estivesse próximo (conversando mesmo), numa linguagem bastante coloquial. O Machado de Assis tinha uma grande facilidade pra escrever assim. Se você pega um romance do Machado de Assis ou um texto do Machado, provavelmente, você vai recorrer menos ao dicionário. Isso pode dar a impressão de o Machado ser menos profundo ou ser menos erudito, e, isso, absolutamente, não é verdade. O Machado era um homem extremamente erudito, mas ele sabia dosar a linguagem. Então era moldado pra crônica. Melhor dizendo, como ele também se deu muito bem em contos e romances, ele sabia usar o gênero. Então ele foi um cronista extraordinário.

Marcelo Abud:
As crônicas reunidas no livro foram escritas para o Jornal Gazeta de Notícias. Bons Dias era o nome da coluna que valorizava o lado cético de Machado de Assis.

Fernando Marcílio:
A palavra crônica vem de Chronos, uma divindade exuberante associada ao tempo. Então a crônica sempre se fez como um registro de acontecimento. No caso das crônicas machadianas, a relação dessas crônicas com o seu próprio tempo é muito estreita, é muito intensa. Uma das grandes dificuldades pra leitura das crônicas do Machado não é o texto, mas o contexto, as referências a partir das quais o Machado constrói o seu texto. Para o leitor do século XXI, principalmente para o leitor mais jovem, essa é uma dificuldade que os vestibulares, eventualmente, podem explorar. Podem explicar um determinado fato histórico, podem até fazer referências jornalísticas a esse fato histórico ou, a partir de uma crônica do Machado, solicitar a visão que o Machado apresenta desse evento histórico.

Som de página sendo virada

Marcelo Abud:
No jornal, Machado não assinava as crônicas. Elas eram atribuídas a um personagem que foi criado especialmente para a coluna.

Fernando Marcílio:
Esse relojoeiro, o Policarpo, é um relojoeiro aposentado, ele não é mais um relojoeiro. Naquele momento a função de relojoeiro não é só quando a gente leva o nosso relógio de pulso para consertar ou coisa parecida, ele era um comerciante de produtos de luxo, eles também lidavam com joias. Isso é importante pelo seguinte: nós estamos diante de um personagem que tem no seu círculo de amigos gente da elite carioca. A perspectiva a partir da qual ele fala é uma perspectiva da elite. O Machado, na sua visão da realidade brasileira, ele opta sempre por mostrar essa perspectiva da elite. Não pra assinar embaixo dessa perspectiva, mas para denunciar os vícios dessa perspectiva.

Música: “Filosofia” (Noel Rosa), com Mário Reis
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

Marcelo Abud:
O professor cita e lê o trecho de uma crônica em que o relojoeiro Policarpo oferece a alguns amigos um jantar, para celebrar a libertação de um escravo.
Fernando Marcílio:
O Pancrácio, que é o escravo dele. Só que essa libertação era absolutamente inócua, porque a Abolição estava para ser feita. Então ele reúne os amigos, dá um jantar, faz uma cena toda de “O homem generoso que está libertando o seu escravo”, às vésperas de uma libertação que seria universal, que seria generalizada. E na cena em que ele conversa com o Pancrácio, no dia seguinte a esse jantar, ele fala que o Pancrácio vai ser livre e tal, que ele poderia ir para onde ele quisesse, mas, se quisesse, né, continuar ali na casa dele, ele teria um ordenado pequeno, mas ele poderia ficar. E aí é que vem o trecho que eu acho genial.

Som de página de livro sendo virada

Música: trecho instrumental de “Filosofia” (Noel Rosa) fica de fundo

Fernando Marcílio:
“Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e – Deus me perdoe – creio que até alegre.”

Som de página de livro sendo virada

Fernando Marcílio:
Ele liberta o escravo e continua tratando o escravo da mesma maneira como tratava antes. É uma alegoria do que a sociedade brasileira faria com um negro, após a Abolição.

Sobe som da música “Filosofia” (Noel Rosa)
O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome

Marcelo Abud:
Já com relação à República, Machado de Assis era conservador e temia que com o poder mais espalhado pelos Estados, os coronéis conseguiriam governar de maneira autoritária.

Fernando Marcílio:
Machado não era exatamente um revolucionário. Ele estava longe de ser isso. Ele era um conservador, estava muito próximo da Família Real, inclusive, ele tinha simpatias pela Monarquia, mas ele reconhecia problemas que a Monarquia enfrentava naquele momento e já sabia que o fim da Monarquia “eram favas contadas”. Mas o Machado não embarcava na onda do entusiasmo absoluto pela República. Tem uma frase – aliás, dita por um meteoro (é isso mesmo, um “meteoro”, um exercício de realismo fantástico numa das crônicas) e fala em francês (risos) – que “a República seria branca como qualquer outra”. Esta frase é claramente uma alusão ao fato de que a República não representaria a integração do negro na sociedade brasileira. Nada mudaria para esses negros. O posicionamento dele é sempre um posicionamento “pé atrás”, entendeu, com as instituições brasileiras.

Som de página sendo virada

Marcelo Abud:
O texto de abertura da obra é justamente a apresentação do suposto autor das crônicas, em que ele se apresenta ao público como um pobre relojoeiro.

Fernando Marcílio:
Eu acho de uma sutileza, de uma ironia, pra mim isso aqui é uma aula de Machado de Assis. Olha só, ele fala assim:

Música: “Batuque” (Luciano Gallet) fica de fundo

Fernando Marcílio:
“Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício.
A única explicação dos relógios era serem iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro.”.

Som de página sendo virada

Fernando Marcílio:
Nós estamos aqui diante de uma categoria de narrador que o Machado sempre explorou muito, que é o narrador que a gente tem que ler sempre com uma certa dose de desconfiança. É assim que o Machado contesta, inclusive a noção de verdade: se ela é relativa, então como é que a gente pode fundar o realismo numa noção de verdade que seja absoluta?

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
No final do século XIX, três palavras estavam diretamente relacionadas com o realismo, escola literária que predominava na época: verdade, ciência e razão. Segundo Fernando Marcílio, Machado de Assis, ao longo de sua obra, vai contestar exatamente estes três conceitos. As 49 crônicas reunidas em “Bons Dias” comprovam isso, ao revelam um autor cético e irônico.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

 

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