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Aos 81 anos, a professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Heloisa Buarque de Hollanda é uma das pioneiras no estudo de teorias feministas no Brasil. Organizadora de quatro volumes da coleção “Pensamento Feminista Hoje”, a pesquisadora fala ao Instituto Claro sobre a importância de trabalhar na escola o “feminismo decolonial”, conceito criado pela socióloga argentina Maria Lugones, em 2009.

Feminismo decolonial

“Não dá para se estudar feminismo com uma visão eurocentrada e norte-americana. O que a Lugones propõe é que se comece a ter consciência de que nós não somos iguais à Europa, nós somos países colonizados pela Europa. O português chega aqui e encontra uma cultura muito bem consolidada, que é a cultura indígena e, um pouco mais pra frente, a cultura negra”, explica. Ela destaca, ainda, que o patriarcado é uma estrutura que vem da Europa e não era presente nas culturas indígenas e africanas. Assim, Hollanda defende o estudo do feminismo decolonial no ensino médio, a fim de entender como nossos comportamentos sociais são impactados também por essa ancestralidade.

Poesia falada

Segundo a professora, o ambiente da internet traz bons exemplos de materiais que podem ser apresentados aos estudantes. Nesse contexto, as batalhas de Slam, poesia falada comum entre jovens das periferias, são consideradas por ela como uma boa forma de se entender o feminismo decolonial no ambiente escolar. “O Slam é centrado em gênero, é centrado em raça, é muito brasileiro. O Slam do norte é completamente diferente do nosso Slam (sudeste) e do Slam do sul. É uma manifestação poética de periferia, jovem, muito nova e que não abre mão da coreografia, do corpo, que é uma linguagem extremamente indígena e negra”.

Heloisa Buarque de Hollanda
A pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda (crédito: divulgação)

Entre as contribuições de Heloisa Buarque de Hollanda para a literatura está a organização do livro “26 poetas hoje”, publicado em 1976. Foi nessa antologia, por exemplo, que a poeta Ana Cristina Cesar foi lançada. Agora, a pesquisadora acaba de lançar um novo projeto: a obra “As 29 poetas hoje”. “São meninas de 25 anos pra baixo escrevendo poesia pelo Brasil inteiro. E temos todas as opções de gênero: trans, lésbica, indígena, negra, branca. É decolonial. Fala de Brasil, quer dizer, é uma luta de gênero contextualizada, não é uma cópia com o padrão, digamos, de uma poeta americana, longe disso”, comenta.

Hollanda considera que “As 29 poetas hoje” é um bom caminho também para trabalhar o feminismo decolonial na escola. Além dos temas e da qualidade literária, há o fato de serem mulheres jovens dialogando com adolescentes e jovens. “Elas falam de aborto; elas falam de filho de uma forma solta, sabe?É o desconforto, é a dúvida; você tem o cotidiano de mulher que nunca entrou na poesia. Menstruação! Então pela primeira vez essas vinte e nove botam na mesa o que é ser mulher, suas dúvidas, seus desconfortos, suas alegrias, sua confiança, é muito bonito. Eu sou doida por elas!”, conclui a pesquisadora

Veja mais:

Ouça um podcast sobre a obra “A teus pés”, de Ana Cristina Cesar, e entenda um pouco mais sobre a “geração mimeografo”, contemplada em “26 poetas hoje”

Transcrição do Áudio

Música Double You, de The Mini Vandals, fica de fundo

Heloisa Buarque de Hollanda:
Eu fui a todas as ocupações de ensino médio pra conversar com as meninas e com os meninos sobre, exatamente, feminismo. Eu me surpreendi muito porque os meninos estavam muito antenados com a causa das meninas. E as meninas também, né? É engraçado que isso pegou, viralizou, muito por conta da internet mesmo e eu estou apostando muito nessa nova geração.
Eu sou Heloisa Buarque de Hollanda, professora emérita da escola de comunicação e tenho um programa bem grande na faculdade de letras da UFRJ.

Vinheta “Instituto Claro – Educação”

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Aos 81 anos de idade, Heloisa Buarque de Hollanda é uma das pioneiras a tratar o feminismo no Brasil. Organizadora de uma série de livros sobre teoria feminista direcionada a um público do ensino médio, é responsável pela obra “Pensamento feminista hoje: Perspectivas decoloniais” e está lançando o livro “As 29 poetas hoje”.
A professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro explica que o conceito de feminismo decolonial tem origem, em 2009, na obra da escritora argentina Maria Lugones.

Heloisa Buarque de Hollanda:
E a ideia da Maria Lugones é o seguinte: não dá para estudar feminismo com uma visão eurocentrada e norte-americana; nós não nos adequamos na situação de gênero e raça dos países centrais; nós trabalhamos numa arena muito mais conflitiva, conflagrada mesmo, da questão de gênero e raça (você vê aqui se morre muito, né, principalmente nas camadas mais pobres…). E o que a Lugones propõe é que se comece a ter consciência de que nós não somos iguais à Europa, nós somos países colonizados pela Europa. O português chega aqui e ele encontra uma cultura já muito desenvolvida e consolidada, que é a cultura indígena e um pouco mais pra frente a cultura negra. Essa cultura indígena ela tinha seus modos de ver o gênero, de ver as relações de poder, modos das relações entre homens e mulheres…. esses códigos eram completamente diferentes dos europeus.

Música: “Índios” (Renato Russo), com Leila Pinheiro
Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha

Heloisa Buarque de Hollanda:
Então vem a Europa, dá aquela primeira missa que foi uma geral, né, decapitação geral cultural; entra com o catolicismo pesado, evangeliza esses povos e começa uma situação muito complexa. Então não fica nem lá nem cá, não é que tenha absorvido completamente a europeia, mas também não preservou a sua. Então o decolonial é exatamente você olhar para esse momento de devastação colonial e perceber que ali se instala, inclusive, uma forma de patriarcado europeu. Você não tem patriarcado entre os índios, pouquíssimas tribos têm essa característica. Nos países africanos você também não tem; em regiões da África você tem exatamente o matriarcado. Esse modelo patriarcal que as mulheres, hoje, querem reler ou, enfim, readaptar, é o modelo que não é nosso! Ele não é nem dos índios nem dos negros, quer dizer, é do português.

Marcelo Abud:
De acordo com a pesquisadora é preciso descolonizar as mentes das novas gerações e propor uma perspectiva diferente do que aconteceu no Brasil.

Heloisa Buarque de Hollanda:
O decolonial me parece muito importante de estudar, porque você está estudando uma realidade muito complexa que o Brasil contém o impacto e uma devastação de culturas, que preexistiu e, de certa forma, resistiram ainda no nosso ideário. Você ainda tem resquícios… Tem estudos muito interessantes mostrando ainda formas do desenho de gênero africano e indígena nos nossos comportamentos, mas quando a gente vai estudar, a gente estuda o modelo europeu, então não casa bem.

Marcelo Abud:
Slam é uma expressão inglesa em que o significado se assemelha à “batida” de porta ou janela. Heloisa Buarque de Hollanda considera o Slam a melhor maneira de aproximar o feminismo de estudantes do ensino médio.

Heloisa Buarque de Hollanda:
Mas o Slam é um feminismo decolonial, que é centrado em gênero, é centrado em raça, e é muito brasileiro. Porque eu estudei muito tempo o Slam, você vê que o Slam do norte é completamente diferente do nosso Slam e do Slam do sul. Ele é bem contextualizado, é muito interessante.

Marcelo Abud:
Tawane Theodoro foi uma das finalistas do Slam da Guilhermina, em 2017, com a poesia “Eu não queria ser feminista”.

Tawane Theodoro:
Eu não deveria ser feminista em pleno século XXI, minha gente! Feminismo não deveria nem existir. Calma, sociedade, não comece a sorrir. É porque mulheres não tinham que precisar resistir tanto assim. É até difícil de imaginar que em uma era tão tecnológica eu ainda tenha que implorar, vendo relacionamentos abusivos se tornando coisa normal, ou melhor, ‘coisa de casal’. Ninguém liga pra mulher ou pra sua dor fazendo acreditar que tudo isso é amor.

Heloisa Buarque de Hollanda:
É uma manifestação poética de periferia, jovem, né, muito nova. E que não abre mão da coreografia, do corpo, que é uma linguagem extremamente indígena e negra, que é a fala com o corpo, o que você não tem na europeia, né, muito. E o Slam… a poesia incorporou isso.

Marcelo Abud:
A poeta Ana Cristina Cesar foi revelada em 1976 na antologia organizada por Heloisa Buarque de Hollanda “26 poetas hoje”. Na época, Ana Cristina Cesar dizia que as mulheres buscavam uma linguagem de mulher, mas elas não falavam de temas de mulher. Agora, 45 anos depois, Hollanda é responsável pelo livro recém-lançado “As 29 poetas hoje”. Ela explica que a obra é indicada para ser lida na escola e que hoje as poetas falam de temas que tocam diretamente a mulher.

Heloisa Buarque de Hollanda:
E são de meninas de 25 anos pra baixo escrevendo poesia pelo Brasil inteiro e tem todas as opções de gênero: tem trans, tem lésbica, tem indígena, tem negra, tem branca… Mas, então, se você ver a diferença que é, é uma coisa decolonial. Fala de Brasil, Brasil, quer dizer, é uma luta de gênero contextualizada, não é uma cópia com o padrão, digamos, de uma poeta americana, longe disso. (Ênfase)

Música: Respeita (Ana Cañas)
Desrespeitada
Ignorada
Assediada
Explorada
Mutilada
Destratada
Reprimida
Explorada
Mas a luz
Não se apaga
Digo o que sinto
Ninguém me cala

Heloisa Buarque de Hollanda:
Pela primeira vez, elas estão falando, agora, essas vinte e nove, de temas de mulher: elas falam de aborto; elas falam de filho de uma forma solta… sabe, é o desconforto, é a dúvida; você tem o cotidiano de mulher que nunca entrou na poesia. Menstruação! Então pela primeira vez essas vinte e nove botam na mesa o que é ser mulher, suas dúvidas, seus desconfortos, suas alegrias, sua confiança, é muito bonito. Eu sou doida por elas!

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Heloisa Buarque de Hollanda aponta como diferencial dessa nova geração de mulheres a atuação delas não apenas a partir de novos eixos temáticos; ela destaca também a qualidade literária dessas poetas, além do uso que fazem dos novos meios como os canais digitais e as batalhas de Slam.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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