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“O Conto da Ilha Desconhecida” é um dos principais trabalhos voltados para o público infantojuvenil assinados por José Saramago. Na obra, um homem vai ao rei e lhe pede um barco para viajar até uma ilha desconhecida. “A ilha desconhecida é a representação de um grande sonho, que é projetar ideias, desejos, pensamentos, expectativas de vida. E eu diria, também, que talvez ele fale, sobretudo, do caminhar para as conquistas humanas. A importância, talvez, não seja tanto encontrar a ilha desconhecida, mas lutar pela busca desta ilha”, avalia a professora de Teoria Literária e de Literatura Brasileira e Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Vera Bastazin.

O conto do autor português, que completaria 100 anos em 2022, é mostrado como uma parábola do sonho realizado, uma esperança de que a vontade e a obstinação façam a fantasia “ancorar em porto seguro”, como descreve a apresentação do livro. Esse sonho, no entanto, é submetido a uma série de burocracias, diante do estado consolidado das coisas.

“Esse personagem representa um pouco o desejo que todos nós temos, mas que nem todos temos a coragem de exercer: ser um sonhador e sair lutando por isso. Então ele enfrenta o rei nesse sentido e diz ‘olha, o sonho é maior do que o seu poder de rei’. E ele vai mostrar. Até poderia não existir uma ilha desconhecida, mas ele dá vida, dá espaço, dá realização”, conclui a entrevistada, que também é autora do livro “José Saramago: uma Homenagem”. No áudio, ela faz análise de ‘O conto da ilha desconhecida’.

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Transcrição do Áudio

Música: “Ilha” (instrumental), criada e tocada por Reynaldo Bessa, fica de fundo

Vera Bastazin:
No caso deste livro, o “Conto da Ilha Desconhecida”, homens e mulheres saem em busca de um ideal. O Saramago ele é cheio de pinceladas dessa utopia que é saudável, sabe, pra mente, pra alma, que eu acho que, no fundo, no fundo, tem uma utopia em relação à busca da felicidade do homem, né, do bem-estar, do bem-estar social… Ele deixa as suas pinceladas muito bem marcadas em toda a sua obra nesse sentido.
Meu nome é Vera Bastazin, professora, sou doutora, atuo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; realizei pós-doutorado na Universidade de Braga. Tenho um livro publicado sobre Saramago – dediquei a ele longos anos de pesquisa.

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Música: “Ilha” (Reynaldo Bessa)

Marcelo Abud:
Em “O Conto da Ilha Desconhecida”, José Saramago faz uma parábola do sonho realizado. Um navegar pela vontade e obstinação que fazem a fantasia ancorar em porto seguro.

Vera Bastazin:
A Ilha Desconhecida é a representação de um grande sonho, que é projetar ideias, desejos, pensamentos, expectativas de vida. Como é que essa busca se realiza? Aí começa toda a fabulação… Ele vai bater à porta do rei e pedir o barco. Quando entro na narrativa, eu entro pelas portas da fábula, do conto maravilhoso, que é aquilo que a gente chama comumente de conto de fadas. Porque tem um contexto de castelo e de rei e de um tempo que não é determinado, nem em tempos específicos – onde isso aconteceu -, nem quando isso aconteceu.

Música: “Cais” (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos), com Milton Nascimento
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador

(Som de página de livro sendo virada)

Marcelo Abud
Antes do sonho ser realizado, ele é submetido a uma série de embates com o estado consolidado das coisas.

Vera Bastazin:
“O Conto da Ilha Desconhecida” fala das hierarquias e das hipocrisias do poder; fala das relações de amor e trabalho (porque isso vai se mostrar muito ao longo da pequena narrativa); da significação dos espaços: não há como não contrapor o espaço do castelo rígido, fechado, austero, com pouca abertura, que são suas portas e janelas (castelo geralmente é feito de pedras); e o barco, que vai sair pelo mar navegando, flutuando, sendo movido pelo vento… Então há uma oposição entre esses espaços.
E eu diria, também, que talvez ele fale, sobretudo, do caminhar para as conquistas humanas, né? A importância, talvez, não seja tanto encontrar a “ilha desconhecida”, mas lutar pela busca desta ilha. E pela construção, porque no fundo a gente vai ver que ele acaba como que construindo, né, concebendo uma ilha a partir do seu espaço, que é o barco, né?

Marcelo Abud:
No conto, mais importante do que a figura do rei é a da mulher da limpeza. É dela a autoridade para despachar sim ou não, conforme a maré.

Vera Bastazin:
Eu poderia ter dito também que uma das temáticas fosse a utopia e até a alteridade, porque esse homem-sonhador não conseguiria realizar nada sozinho. Ele precisou muito mais, vamos dizer assim, da mulher da limpeza ao seu lado, do que o próprio rei que lhe concedeu o barco. Porque ele poderia ter conseguido o barco e não ter saído porque ele temesse o mar; porque ele não consegue reunir uma tripulação. E, com ela, ele vai conseguir realizar o sonho. Então a questão da alteridade está muito marcada aí, né, o ‘eu’, sozinho, não existe; o ‘eu’ só se faz na relação com o outro.

Música: “Prelúdio” (Raul Seixas), com Zé Ramalho e Roberta do Recife
Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto
É realidade

Vera Bastazin:
Esse personagem representa um pouco esse desejo que todos nós temos, mas que nem todos nós temos a coragem de ser: ser um sonhador e sair lutando por isso, né? O rei ironiza, fala: ‘(tsic) o que você quer? Pra que você quer um barco?’. ‘Ah, eu quero encontrar a ilha desconhecida’. ‘Ah, (tsic) ih, não existe!’. ‘Como não existe? Se ela não foi descoberta, como que você pode dizer que não existe?’. ‘Ah, mas todas as ilhas que existem eu já mandei registrar nos mapas…’.
Então ele enfrenta o rei nesse sentido e diz ‘olha, o sonho é maior do que o seu poder de rei’. E ele vai mostrar, né? Até poderia não existir uma ‘ilha desconhecida’, mas ele dá vida, dá espaço, dá realização…

Marcelo Abud:
A professora seleciona e lê um trecho da obra.

Vera Bastazin:
… um pedaço do parágrafo final. Diz assim…
(som de página de livro sendo virada)
“É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já estivesse madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, as letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”

Música: “Navega, coração” (Kleiton & Kledir)
Navega coração
As águas desse mar
Voa coração
Pra lá do arco-íris

Som de página sendo virada

Vera Bastazin:
Quando você pensa na estrutura básica do conto de fadas, é aquela: a personagem, né, sai do seu local primeiro, se desloca, luta, vence obstáculos, até chegar à conquista daquilo que queria e, ao final, tem uma premiação. Geralmente é um casamento… Casaram-se, tiveram muitos filhos e tal.
Só que, nesse caso, você tem a dúvida: essa ilha existia e eles encontraram? Ou essa ilha é produto de uma construção, vamos dizer assim, com as próprias mãos do sonhador, né, que colocou ali os sacos de terra, que deu espaço para os pássaros trazerem as sementes e que fez nascer? Transformou-se o sonho em realidade. Então é a ação do sujeito, não é só o sonho que ficou no ar, no imaginário. São as mãos que dirigiram o leme, né, e que fizeram esse sonho se tornar realidade. Eu acho isso muito bacana, né?

Música: “Ilha” (instrumental), criada e tocada por Reynaldo Bessa, fica de fundo

Marcelo Abud:
Vera Bastazin aponta que a estrutura do conto é muito bem elaborada, o que torna sua leitura indicada para o ensino médio ou, com a mediação de professores e professoras, para os últimos anos do ensino fundamental.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

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