Os jogos refletem características culturais das sociedades que os produzem, possuindo, assim, valores incorporados. Em certos casos, isso é mais explicito do que em outros. O polêmico jogo digital Bolsomito 2K18, divulgado durante a campanha para a presidência, é um exemplo. A estrutura desse jogo evidencia, claramente, a adesão a valores violentos e de extrema direita. Os próprios advogados da campanha de Bolsonaro procuraram dissociá-lo desse produto, conforme a notícia “Jogo em que ‘Bolsomito’ mata minorias pode ‘configurar incitação ao crime’, diz ministro do TSE”, do site O Globo.

Devido a situações infames ou controversas como essas, há uma recorrente suspeita em relação aos jogos. E isso se reflete numa ênfase da pesquisa acadêmica sobre o potencial negativo de promoção de comportamentos (violência, antissociabilidade etc.) que eles teriam. Mas e se os jogos fossem pensados para favorecer valores, ideias, comportamentos, reflexões com teor construtivo? Se as pessoas gostam tanto de jogos, não seria possível transmitir parte desse entusiasmo para contextos escolares, de aprendizado ou para a mudança social?

Estas perguntas permeiam e envolvem ainda hoje grande parte das práticas e discussões relacionadas aos jogos educativos e também àqueles que buscam estimular formas mais críticas de pensar, podendo, para isso, destacar uma série de questões sociais, não tradicionalmente tematizadas em jogos. Há uma variedade de termos que englobam esta preocupação: games for change, jogos sérios, jogos persuasivos, jogo ativista, jogo com valores ou jogo prossocial.

As três últimas noções são associadas à designer e estudiosa de jogos Mary Flanagan. Na interessante palestra TED “Critical Play”, ela explica algumas de suas ideias, e um dos livros escritos por ela (com Helen Nissenbaum) foi traduzido para o português, com o título “Values at Play: Valores em Jogos Digitais” (Blucher, 2016). Um ponto forte de intersecção entre os conceitos mencionados é a tentativa de contornar uma armadilha na qual os jogos educativos ou que tentam promover mudanças, frequentemente, caem: a falta de apelo, que leva ao desinteresse das pessoas que tinham sido imaginadas como usuárias preferenciais.

De fato, uma das características mais marcantes do jogo é – além da ludicidade, do prazer que provocam – o seu caráter voluntário (para o jogador). Esse aspecto tanto abre as portas para a motivação intrínseca, que favorece o aprendizado, quanto fecha, quando o jogo é percebido como desinteressante, sendo jogado somente por motivos extrínsecos ao indivíduo – por exemplo, o desejo escolar de que ele aprenda algo. Os jogos que pretendem educar ou promover mudanças são muitas vezes vistos como “chatos”, principalmente por adotarem uma abordagem que privilegia a transmissão de informações. Mas essa ênfase transmissiva pode ser contraproducente, por vários motivos, entre eles, o fato de que a pesquisa psicológica mostra que informar nem sempre leva a alterações nas percepções das pessoas. (Uma revisão mais ampla sobre essa temática é feita no excelente artigo “A psychologically ‘embedded’ approach to designing games for prosocial causes”, de Geoff Kaufman e Mary Flanagan.)

O fator da ludicidade do jogo é enfatizado pela abordagem mais atual discutida por Flanagan (no artigo recém-mencionado), na qual se defende que o potencial persuasivo do jogo residiria num entrelaçamento mais sútil entre determinada mensagem ou tema dentro do conteúdo, mecânica ou contexto do jogo – em vez de fazer essa mensagem ou tema um aspecto tão óbvio e central.

O que essa discussão talvez mostre de mais importante é o quanto o design do jogo educativo ou para mudança social é complexo e – por isso mesmo – digno da atenção dos educadores ou dos que se voltam à temática. Afinal, os resultados podem ser enriquecedores de nossa imaginação e capacidade de pensar sobre o mundo, além de prazerosos. Gostaria de finalizar o texto com um exemplo.

Há pouco, numa disciplina de jogos para os alunos da licenciatura em educomunicação da USP, um estudante apresentou para os participantes uma experiência de jogo, ainda em fase de produção, chamada “Who’s She?”, poucos dias depois comecei a ver várias notícias sobre ela (como a matéria “O jogo que propõe adivinhar a identidade de mulheres notáveis”, do jornal Nexo).

O vídeo “A Board Game About Extraordinary Women”, publicado na página do Facebook da Mental Floss, explica a ideia do jogo.

Pois bem, é fácil entender, creio, todo o sucesso que essa iniciativa está obtendo: levará todos os que jogarem a conhecerem e reconhecerem a importância de muitas mulheres em diferentes campos da atividade humana, indicando, assim, que a mulheres não estariam limitadas a só alguns papeis ou profissões. Além disso, ao utilizar uma mecânica de jogo comum e agradável parece ser um produto com alta jogabilidade e interesse, com o potencial educativo “suave” que foi mencionado.

Crédito da imagem: divulgação jogo “Who’s She?”

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Autor Richard Romancini

Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.

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