O chamado trigger warning tem provocado bastante debate na educação superior dos Estados Unidos. Não é surpresa, a ideia é polêmica e sujeita a controvérsias. Para alguns críticos, trata-se de uma nova roupagem do “politicamente correto” nos campi. Para os defensores, é somente uma atualização das práticas pedagógicas ao tempo atual. Embora o trigger warning seja um fenômeno típico dos EUA e do contexto anglo-saxão (como a ferramenta que permite verificar buscas feitas no Google deixa claro – aqui), de certo modo, surge também no Brasil.
Mas, afinal, o que é
trigger warning? A expressão é de difícil tradução. Em inglês, “trigger” significa, com valor de substantivo, o “gatilho” de uma arma, e como verbo a causa de algo, o que desencadeia alguma coisa. Por sua vez, “warning” remete às palavras “aviso”, “alarme”, “advertência” e “precaução”. Uma boa definição descritiva para o termo é dada por Jeet Heer (num
artigo para a revista
New Republic): “rótulos de advertência nos currículos e planos de curso com alerta aos estudantes de que o material pode evocar memórias dolorosas”.
A ideia deriva de práticas adotadas em fóruns feministas na internet, sites e blogs, tendo obtido maior alcance por meio da mídia social. A revista
Slate declarou que 2013 foi o “
ano do trigger warning”. Então, falava-se principalmente sobre o tema em relação aos conteúdos da internet e na TV, mas em pouco tempo chegou à educação. De maneira irônica, Conor Friedersdorf (
aqui) indaga sobre o que as faculdades podem aprender com o canal HBO sobre o assunto.
O trigger warning é demandado por estudantes pertencentes a grupos vulneráveis ou que sofreram algum tipo de violência (abuso sexual, racismo, etc.), bem como pelos que acolhem a ideia de inserir alertas no material didático (e currículos) sobre o risco da exposição a algum conteúdo. Defende-se que a universidade deve ser um “ambiente seguro”.
Dois casos são bastante emblemáticos. No primeiro, em fevereiro do ano passado, alguns estudantes do Wellesley College protestaram contra a estátua realista de um homem vestindo apenas roupa de baixo. Eles iniciaram uma
petição no Charge.org para que a escultura (que fazia parte de uma exposição) fosse removida dos arredores do museu da faculdade e colocada no prédio da instituição.
Em outro caso, ocorrido em abril deste ano na Columbia University, quatro estudantes defenderam o
trigger warning, ao relatar o caso de uma estudante que, ao ler para um curso partes da
Metamorfose do Ovídio, alegou sentir-se desconfortável. A estudante tinha sido vítima de abuso sexual, e a obra em questão faz descrições deste ato. A aluna externou seu mal estar ao professor, que desconsiderou a reclamação. O artigo, publicado no jornal estudantil da universidade, significativamente intitula-se “
Our identities matter in Core classrooms” (Nossas identidades importam no currículo Básico das turmas).
É evidente que algumas situações têm um viés cômico que não escapa aos críticos da proposta. Assim, ela é vista como um preocupante sinal de infantilização estudantil – transformar o ambiente universitário e as salas de aula numa espécie de bolha pode ser negativo para os próprios alunos, já que “a vida não possui trigger warnings”. Ainda numa perspectiva crítica, nota-se que a adoção de políticas (por exemplo, guias de conduta, como o cogitado pelo Oberlin College) relacionadas com o assunto pode prejudicar a liberdade dos estudos acadêmicos, a exposição de ideias e ser um instrumento para a intimidação de professores.
Outra crítica é que submeter o estudante a um choque ou desconforto pode estar nos planos e intenções da ação pedagógica. A experiência universitária implica certa dose de inquietação e atenção a problemas muitas vezes brutais. O sociólogo Todd Gitlin oferece (
aqui) um exemplo interessante, narrando quando seu professor fez a classe assistir ao filme nazista
O triunfo da vontade, seguido pelo documentário sobre os campos de concentração
Noite e neblina.
Uma compilação de aspectos questionáveis ou possivelmente negativos do
trigger warning é feita num artigo assinado por quatro professores (
aqui). O texto é bastante razoável, e não desmerece, em si, a preocupação, procurando oferecer algumas alternativas a ela, como a existência de recursos de aconselhamento e grupos de apoio para estudantes que necessitem.
No contexto dos EUA (um país que possui muito veteranos de guerras), a discussão do tema associa-se ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Tept). Para Ashley Mackenzie (
aqui), a crença popular na validade deste distúrbio e a tendência a tornar patologia os problemas sociais explicam o surgimento do
trigger warning.
A minha interpretação (sem excluir outras causas) é que a erosão da crença na política e a perda de confiança no universalismo como motor da mudança social fortalecem as iniciativas relacionadas a diferentes “identidades”, fragmentadas e diversas. Esta crise da política é vivida em todos os lugares, o que leva a crer que o debate atingirá muitos países. Há, de qualquer modo, pontos também válidos e razoáveis relacionados com a defesa do trigger warning, no meu entender. Pretendo abordá-los no próximo artigo, assim como a relação mais direta já existente entre o Brasil e o tema. No entanto, se o leitor refletir sobre o que leu e acionar sua memória, talvez lembre um fato.
Caso tenha pensado em Monteiro Lobato, acertou.
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