Lembrando sorrateiramente o poema Louvor do Aprender, de Bertold Brecht, arrisco-me a dizer que mesmo com filmes de qualidade duvidosa, há muito aprendizado possível. Um sistema rico de referências e interpretações, os reflexos sociais e de mercado, as razões históricas e geográficas de seu desenvolvimento, seu impacto na cultura. A análise desses elementos pode compor um exercício desafiador e interessante.
Tome-se com um grupo de estudantes um rápido ciclo de filmes sobre Kung Fu: O Dragão Chinês (1971), A Fúria do Dragão (1972), O Voo do Dragão (1972), Jogo da Morte (1978) e Jogo da Morte 2 (1982). Os mais experimentados sabem que se trata de filmes de Bruce Lee. Nossos alunos não o conhecem tão bem, mas reconhecerão no conjunto o cinema de ação.
Em geral, tratam-se de filmes com tramas primárias, sempre mostrando um projeto de vingança pela morte de um amigo, parente ou mestre. As cenas de luta se aproximam mais de uma coreografia ensaiada e uma violência que não convence. Há bonecos lançados ao ar como se fossem corpos, golpes que matam de forma bizarra e saltos ornamentais dignos dos trampolins acrobáticos.
Os personagens costumam ser planos e simples: o mal é muito mal, feio, cínico e envolvido com o tráfico de drogas ou a prostituição; o bom é sofrido, inicialmente contido, e terá sua redenção ao final; as mocinhas… bem, as mocinhas não importam tanto pois servem somente como par sentimental ou sensual do herói. Os filmes têm uma sonorização um tanto tacanha. Em O Dragão Chinês, por exemplo, quando o personagem de Lee agarra um colar que ganhou de sua mãe e que lhe impedia de lutar, ouvimos uma canção  de ninar. A montagem tem descontinuidades e falhas técnicas constantes. Ver esses filmes com os alunos traz constantes risos e surtos de descrença.
Mas há que se pensar com os alunos o que está por trás dos filmes. Primeiramente, interessa lembrar que os primeiros filmes de Bruce Lee foram feitos sem nenhuma estrutura da indústria do cinema. O Dragão Chinês mostra uma Tailândia rural, nos revelando hábitos de vida (dormir, comer, transportar) peculiares e incomuns. Em A Fúria do Dragão encontramos um claro registro do conflito China-Japão, que marcou a história de Hong Kong durante toda a primeira metade do Século 20. A luta é, sem dúvida, a marca do filme, mas não há misticismo ou estranhamento: no final das contas são filmes feitos majoritariamente para o mercado interno, privilegiando as questões culturais locais, sendo suas falhas decorrentes do estado da arte do cinema local. O contexto histórico é uma ótima ferramenta para a interdisciplinaridade com o cinema. Há muito o que compreender sobre o contexto desses filmes.
Quando foram lançados O Voo do Dragão e Operação Dragão, o interesse dos norte-americanos pelas artes marciais já estava consolidado. Operação foi o filme de maior apelo comercial no ocidente, pois foi produzido em parceria com a Warner Brothers sendo consequentemente mais bem distribuído e montado. Os olhos do Ocidente para um Oriente exótico acabaram por alcançar o mundo com estridência. Os filmes ganham apelo comercial internacional e Japão, China, Hong Kong e Coreias passaram a ser referidas, genericamente, como ‘orientais’ em um amálgama indistinto de música-luta-vestimenta que só cria um cenário  para a pancadaria.
Os dois filmes Jogo da Morte foram montados anos após a morte de Bruce Lee, quando ele já era considerado o grande mestre das artes marciais no cinema. No primeiro filme, o personagem de Lee, ao filmar uma cena de um filme (que, metalinguisticamente, seria a cena final do próprio A Fúria do Dragão) forja sua morte para, posteriormente, se livrar da máfia que o atormenta junto, é claro, com sua namorada.
Mas o filme que mais marca o extremo é mesmo Jogo da Morte 2. Ele fica em algum lugar entre o tributo a Bruce Lee (há cenas do ator ainda criança, quando realizou filmes em preto e branco) e o limite do impossível para agradar um público deslumbrado. As personagens são tão caricatas que fica difícil não ter certa afeição. Há a impagável cena de um mestre que luta sem derrubar uma gota de sua xícara de chá e a de um estranhíssimo mestre caucasiano que come carne crua e toma o sangue de um cerdo. As lutas são tão surreais que divertem quaisquer pessoas, principalmente as mais jovens e pouco críticas. Podemos propor como reflexão a nossos estudantes: “Afinal a relação Oriente X Ocidente, sociologicamente falando, não foi também forjada sob a luz do cinema?”
Fazer desses filmes o ponto de partida para um estudo sobre a construção do imaginário do Oriente pelo Ocidente é uma interessante maneira para convidar os alunos para repensarem sobre a compreensão que têm do que é a cultura oriental. Permite-lhes  compreender um pouco como a criação do ‘mito’ Bruce Lee engendrou vários dos filmes de ação. Desde o Karatê Kid (1984) de Ralph Macchio até a longa lista dos filmes-pancadaria de Jean-Claude Van Damme, a vingança e a lembrança a um oriente místico permanecem latentes na cultura ocidental. Quentin Tarantino encheu seus filmes de referências a esse universo e nos divertiu com isso. O Kung Fu Panda (2008) é tributário dessa linha de filmes.
Todavia, estimular os jovens a refletir que o cinema é também criador de estereótipos importa para que a cultura oriental, e todas as culturas diversas das nossas não sejam sinônimo das pantomimas e preconceitos que, certamente, não eram o que Bruce Lee desejava quando realizou seus filmes.

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Ricardo A. B. Lourenço

Ricardo Lourenço é bacharel em Direito, licenciado em Filosofia e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Atua como professor de Educação para as Mídias e Filosofia para o ensino médio, e trabalha com a difusão de cineclubes em escolas.

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