A cidade de Porto Alegre recebeu, entre 10 e 12 de junho de 2015, o VI Encontro Brasileiro de Educomunicação, evento do qual tive o prazer de compor a comissão organizadora, de expor uma experiência de encontros de cinema e de mediar um debate sobre o instigante filme Raça, de Joel Zito Araújo e Megan Mylan. O tema do encontro foi Diversidade e Educomunicação – tecendo saberes e integrando práticas e reuniu pesquisadores, educadores e interessados do país inteiro. Os organizadores do encontro foram o Núcleo de Comunicação e Educação da USP (NCE-USP) e a Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEducom).
 
A escolha do tema central do evento está sintonizada com o debate político-educacional que fervilha em muitas instâncias, desde o Congresso Nacional até as salas de aula da educação infantil. Diversidade é um termo cada vez mais forte nos discursos e práticas educacionais e substituiu um discurso que defendia apenas "igualdade". Não dá pra se falar de igualdade quando as oportunidades não são iguais, quando temos secularmente uma hegemonia da cultura branca europeia e o machismo impregnado em nosso cotidiano. Alcançar a igualdade depende de superar a opressão praticada durante séculos contra os afro-descendentes, indígenas e imigrantes pobres. Dominação econômica, política e cultural que faz com que, paradoxalmente, o movimento negro seja muitas vezes classificado como "das minorias", quando sabemos que os afro-descendentes compõem mais que 50% da nossa população. Para pensarmos uma sociedade realmente democrática é preciso não apenas respeitar as diversidades – étnico-raciais, de gênero, de religiosidade – mas garantir políticas públicas e direito à expressão para que possamos problematizar a falsa ideia de que a sociedade brasileira é cordial e harmônica. 
 
O cinema pode contribuir e muito para esse debate, pois a experiência do filme humanista permite o desenvolvimento do sentimento de alteridade, permite que "vistamos a pele do outro" e tenhamos alguma ideia do que é ser discriminado e violentado. Aliás, Vista minha pele é o título de um curta-metragem de pouco mais de 20 minutos, roteirizado e dirigido por um de nossos poucos cineastas negros com expressão nacional: Joel Zito Araújo. O curta apresenta uma paródia, uma ficção que nos faz imaginar como seria o mundo se os negros fossem maioria na representação das novelas, publicidade, filmes, apresentadores de TV, ídolos da música popular. No filme, os médicos, diretores da escola, professores e outros profissionais considerados “bem sucedidos” são negros. Os brancos moram em bairros bem pobres e assumem todas as tarefas subalternas: serventes da escola, empregadas domésticas, motoristas. A protagonista é Maria, uma garota branca de olhos claros, cabelos loiros e lisos. Seu cabelo é ironizado como sendo “cabelo ruim”. É muito curioso pensar na necessidade da garota de se ver representada na televisão. O curta pode ser assistido aqui
 
O cineasta Joel Zito Araújo foi um dos palestrantes que abriu o evento de Porto Alegre. Ele tem competência pra falar da representação do negro na mídia, pois sua pesquisa de doutorado, realizada na ECA-USP, gerou o documentário A Negação do Brasil e o livro A Negação do Brasil – o negro na telenovela brasileira (Editora Senac, 2000). Esse filme tem sido bastante exibido, especialmente no Canal Brasil, mas pode ser visto também na internet.
 
Joel Zito contou que, por ocasião da pesquisa de doutorado, contou com uma equipe de vários pesquisadores que fez um levantamento de quase todas as novelas exibidas no Brasil até os anos 2000. Constatou que, no corpus pesquisado, em um terço das telenovelas não havia nenhum personagem negro no elenco, nem mesmo figurantes. Aos poucos foram aparecendo negros nas novelas sempre para interpretar papeis negativos (bandidos, prostitutas) ou subalternos (motoristas, empregadas domésticas, escravos). Quando havia alguma exceção, um personagem médico negro ou um casamento inter-racial, sempre apareciam espectadores raivosos, ofendidos com a simples possibilidade de um negro ser representado com algum sucesso. Somente há alguns anos começaram a aparecer protagonistas negras nas novelas e esse documentário premiado de Joel Zito certamente interferiu neste cenário, o que mostra o quanto é importante esse questionamento.
 
Todas as pessoas querem se sentir representadas nas novelas, nos filmes, nos programas jornalísticos. É muito importante para toda a sociedade (e não apenas para os negros) que nessas narrativas existam personagens negros pertencentes a todos os segmentos sociais e que exerçam também profissões “admiradas” pela sociedade, não apenas na condição de subalternidade. 
 
Joel Zito Araújo realizou também um filme muito poético de ficção chamado Filhas do Vento (2004), que narra um drama vivido por uma família negra. O preconceito étnico-racial não é o centro da questão, mas simplesmente situações dramáticas de uma família que, como milhares de famílias brasileiras, é negra. O elenco é afiadíssimo, tendo à frente Ruth de Souza, Léa Garcia, Milton Gonçalves, Maria Ceiça, Taís Araújo, entre muitos outros ótimos atores negros.
 
  
 
Ao final do evento de Porto Alegre, exibimos o documentário Raça (2013), de Joel Zito e Megan Mylan, com debate entre os participantes. O filme apresenta três histórias paralelas de luta por direitos dos negros no Brasil. Uma das lutas é a de Dona Miúda dos Santos, neta de africanos escravizados e ativista quilombola, que defende a posse de suas terras e o respeito às tradições ancestrais da Comunidade Quilombola de Linharinho do Espírito Santo. Acompanhamos também a trajetória do cantor Netinho de Paula na tentativa de instalar uma emissora de TV totalmente voltada para a causa da igualdade racial. E a terceira luta é a do senador Paulo Paim (PT-RS) para a votação do Estatuto da Igualdade Racial. As lutas intercaladas em instâncias tão diferentes dão dinamismo ao filme que, apesar de mostrar imensas dificuldades, mostra o quanto está acesa a luta contra o racismo no Brasil. 
 
  
 
Em sua palestra na abertura do evento, Joel Zito mostrou o quanto a escravidão dos negros deixou marcas profundas e que precisamos descolonizar nossas mentes. A importância da representação dos negros em toda a mídia e a luta por uma nova estética é de fundamental importância para que possamos construir uma sociedade menos desigual. A palestra Por uma estética da diversidade, proferida pelo cineasta, pode ser assistida online (acesse aqui). 
 
Também, mais sobre o VI Encontro Brasileiro de Educomunicação pode ser encontrado no site da ABPEducom.
 

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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