Eu sou Charlie? A questão é menos simples e banal do que aparenta. Passado o calor dos fatos, talvez seja útil pensar neste tema do ponto de vista das representações dos grupos sociais e do papel da educação midiática. 

A análise das representações de grupos sociais (principalmente os minoritários) construídas pelos meios de comunicação é uma perspectiva da educação midiática, principalmente nos Estados Unidos, bastante forte. Um bom exemplo disso é o catálogo de filmes da Media Education Foundation (MEF). A importância dessa ação reside, entre outros pontos, no fato de que o verdadeiro diálogo intercultural não pode se dar a partir de estereótipos e imagens prévias deturpadas, da qual resultam expectativas que afetam as relações.
 
Isso tem paralelo com a famosa noção de “profecia autocumprida” do sociólogo Robert Merton (1910-2003), que afirma que, quando definimos uma situação como real, suas consequências serão reais. Um exemplo ou implicação pedagógica desse conceito é o chamado “efeito Pigmaleão”, ou seja, a influência das expectativas dos professores sobre os resultados de seus alunos. O debate sobre este assunto é complexo, porém o artigo de revisão de Jassim e Harber – resumo aqui – aponta que este efeito existe, e é geralmente pequeno, sendo mais poderoso entre alunos de grupos estigmatizados.  
 
Bem, voltando ao tema Charlie, como os árabes e muçulmanos são mostrados na mídia? De maneira geral, é difícil dizer, mas quanto ao modo como Hollywood os apresenta há um documentário, produzido justamente pela MEF, que indica que é da pior maneira possível. Ele se chama “Filmes ruins, árabes malvados” e mostra que os árabes – como já aconteceu com outros grupos, como os orientais e os judeus (durante o nazismo) – surgem majoritariamente em papéis violentos, dominadores, fanáticos, etc.
 
No caso Charlie, parece, à primeira vista, que o estereótipo saiu diretamente das telas para a redação do jornal. Mas a sinédoque (tomar os jovens radicalizados que cometeram os crimes pelos muçulmanos de maneira geral) é imperfeita, como os próprios fatos mostraram: um policial morto era muçulmano, assim como houve um jovem imigrante que salvou vários fregueses de um mercado judaico, escondendo-os. 
 
Será que isso ficou claro para nossos estudantes? E que imagens eles têm dos árabes de maneira geral? Dependendo de respostas a essas questões, talvez os professores possam pensar em ações pedagógicas, possivelmente relacionadas com a educação midiática, voltadas a enfatizar a unidade (e complexidade) do gênero humano, bem como a importância de não estigmatizar o “outro”, a partir de elaborações simbólicas preconceituosas (Veja Dossiê Primavera Árabe)
 
Cabe notar que, de maneira nenhuma, o propósito de uma atividade pedagógica desse tipo (assim como desse texto) deve ser defender ou abonar o crime cometido contra o jornal parisiense. No entanto, a possibilidade de discutir os limites do humor e da liberdade de expressão não seria imprópria, mas gostaria de abordar esse tema em outra coluna.
 

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Richard Romancini

Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.

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