O tema dos direitos humanos está na pauta, não somente na área do direito, como também nas áreas de história, filosofia, ciências sociais, entre outras áreas do conhecimento. A conquista dos direitos humanos ainda está na esfera do desejo e na perspectiva de um mundo melhor a ser construído. A educação em direitos humanos vem se estruturando e o cinema é um potente instrumento nesse processo.   
 
Até a Idade Média e início da Modernidade não havia, na sociedade dita civilizada, a ideia de que não se pudesse matar ou escravizar outra pessoa, ou ainda que crianças e velhos deveriam ser protegidos. Muitos foram mortos por conta de suas crenças e de suas ideias. No século XVIII, o chamado de Século das Luzes, filósofos propõe novos conceitos, dentre eles os “direitos naturais” ou os “direitos essenciais da pessoa”. Teve início o questionamento das desigualdades, dos maus tratos de uns sobre outros e, mesmo, dos direitos à vida digna e à liberdade, estendida a todos.  
 
Esses questionamentos foram pilares de lutas, guerras e revoluções que resultaram em conquistas importantes que garantiram as igualdades de direitos elementares das pessoas, ou de alguns segmentos sociais. Formalizadas em leis de proteção elas integram, por exemplo, a Carta dos Direitos dos Estados Unidos ou Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos EUA (1789-1791), resultante da Guerra de Independência daquele país, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789-1793),
resultante da Revolução Francesa. Esses documentos foram saltos qualitativos nas transformações sociais e culturais desses momentos históricos. No entanto, uma lei não muda de imediato um hábito arraigado. E as leis são compreendidas e implantadas segundo visões e interesses.
 
Assim, ao final do século XIX, quando muitos criticavam o fato do Brasil ainda manter a escravidão oficial de negros, metrópoles europeias, reunidas na Conferência de Berlim (1984), dividiram e passaram a explorar o continente africano, sem nenhum respeito pelos que ali habitavam, no processo denominado de “neocolonialismo”. É só olhar o mapa da África, para constatarmos que a divisão, feita com uma régua, sequer considerou acidentes geográficos. Tribos foram separadas, povos inimigos foram reunidos numa mesma unidade política, nenhum deles foi respeitado. A mesma França que empunhou a bandeira da liberdade, igualdade e fraternidade no século XVIII, manteve colônias na a África até o século XX. Conflitos atuais no continente africano são também herança da exploração colonial das metrópoles europeias. 
 
Pensando na ordem mundial e nos domínios ao longo dos séculos, vemos que os direitos humanos foram vilipendiados com muitas justificativas e construções culturais que até hoje estão fortes em nosso imaginário.
 
Ao contrário do que se imaginou, no final do século XIX, quando as conquistas e descobertas científicas pareciam o remédio para todos os males, fazendo com que pensadores e artistas vislumbrassem que a civilização ocidental atingira o ápice de equilíbrio e harmonia, a chamada Belle Époque, terminou com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A barbárie mostrou-se viva e presente na humanidade e os interesses econômicos e políticos suplantavam qualquer noção de civilidade.  Apenas 21 anos depois, estoura uma nova guerra mundial, com saldos inacreditáveis de morte e destruição. 
 
Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), com o objetivo de conter as guerras, construir a paz mundial, a partir da defesa dos direitos humanos e da cooperação entre todos os povos foi fundada a Organização das Nações Unidas (ONU). Ela veio substituir a Liga das Nações. Em 10 de dezembro de 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que começa assim:
 
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,    
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum (…) 
 
Referência atual para a defesa dos Direitos Humanos no mundo, o documento merece  discussões por conta das mudanças ocorridas nesses mais de 60 anos.  Cada povo e cada nação têm travado suas lutas de acordo com seus contextos históricos, valores e problemas locais. As lutas de alguns povos são incompreensíveis para outros. Conceitos de violência, cidadania, dignidade, liberdade, emancipação e tantos outros estão vinculados às culturas dos povos. 
 
O foco, antes reservado à igualdade, com a ideia de que era preciso igualar os povos para que houvesse justiça, hoje se desloca para o respeito à diferença. Luta-se pela igualdade na diferença, pois se compreende a necessidade de respeitar cada cultura e cada pessoa em sua especificidade. Direito humano hoje significa o respeito às diversidades: religiosa, sexual, de gênero, étnica, etária, para garantir a dignidade de todas as pessoas. Significa também respeitar a autonomia dos povos e nações.
 
Muitos filmes que circulam internacionalmente cumprem um papel importante de denúncia de violações dos direitos humanos. Não por acaso, há cineastas proibidos de filmar em seus países, submissos à rigorosa censura imposta pelos governos que não admitem a difusão de seus atos de cerceamento das liberdades, como ocorre no Irã e na China, por exemplo. 
 
Dizemos que os filmes humanistas são aqueles que nos fazem perceber o outro: o diferente, o excluído, o invisível.  O cinema humanista favorece o conhecimento dos diversos povos que habitam o planeta, etnias distantes, geográfica e culturalmente. Histórias de lutas apagadas por governos autoritários, denúncias de intolerância e racismo, conquistas de minorias – mulheres, velhos, homossexuais, indígenas. Tudo isso pode ser difundido e fortalecido pelo cinema. Os filmes humanistas, de ficção particularmente, nos emocionam e possibilitam o exercício da alteridade, por nos colocar no lugar do outro. 
 
Há cineastas fundamentalmente humanistas, toda sua obra é realizada para trazer à tona o drama dos excluídos, dos perseguidos, dos mais frágeis, aqueles que não têm voz. Não significa que só filmem dramas. Chaplin, por exemplo, usou a comédia e a poesia. O mesmo podemos dizer de Truffaut, Almodóvar, Ken Loach, Kore-Eda ou Walter Salles. 
 
Há temáticas que, por si, discutem a violação dos direitos humanos. Os horrores da Segunda Guerra Mundial e do holocausto, por exemplo, assim como as torturas e abusos praticados no Brasil no período da ditadura militar, já foram objetos de excelentes filmes. A seguir, alguns bons exemplos de filmes com este foco. É apenas uma lista inicial, que poderá instigar lembranças de tantas outras obras do cinema que abordam os direitos humanos: 
 
Bem-vindo (Welcome, 2009, dirigido por Philippe Loiret) trata da imigração ilegal em Calais, na França. Por ser uma região de passagem, as leis da cidade são extremamente duras para quem ajuda, de alguma forma, os imigrantes (delito de solidariedade). A partir da amizade entre um professor de natação e um jovem curdo (que pretende atravessar o canal da mancha a nado) denuncia a xenofobia na Europa, continente foi considerado o berço da cultura e da civilização. Esse filme gerou um projeto de lei que suprimiu o delito de solidariedade em Calais. 


Flor do Deserto (Desert Flower, 2009, dirigido por Sherry Hormann). Esse é um filme que exemplifica a dificuldade de compreender outras culturas e o próprio conceito de direitos humanos pode significar uma ingerência em outra cultura. Este filme trata da circuncisão feminina praticada em países da África, península arábica e regiões da Ásia. Pratica há mais de três mil anos, consiste na amputação do clitóris (para evitar o prazer sexual) e às vezes até dos lábios vaginais. Feita na infância, em condições de higiene precaríssimas, leva muitas meninas a traumas e à morte. Para o mundo ocidental é inaceitável e viola os direitos humanos. Para os que o praticam trata-se de parte de sua cultura. Mulheres que não passam pelo rito são consideradas impuras e indignas de se casar. O filme problematiza essa questão (mas defende o ponto de vista ocidental). Baseado na história real da modelo somali Waris Dirie, que se valeu da notoriedade como modelo com carreira internacional, para denunciar, na Conferência de Viena, em 1993, a prática.
 
A Vida Secreta das Palavras (La Vida Secreta de las Palavras, dirigido por Isabel Coixet, 2005). O filme, interpretado por Sarah Polley e Tim Robins, trata da amizade construída entre uma enfermeira muito introspectiva e um trabalhador acidentado em uma plataforma de petróleo. Cego temporariamente e com queimaduras pelo corpo, ele é tratado por ela, constituindo uma relação em que segredos são revelados aos poucos. Em um mundo em que as imagens nos bombardeiam, o filme mostra a importância dos demais sentidos para percebermos o outro. Os dois partilham seus dramas e os seus relatos de guerra (sem imagens) mostram a força das palavras. O filme também traz a discussão acerca da importância dos registros para que o mundo conheça as atrocidades, o que talvez possibilite que não se repitam, que a história não se apague. 
 
No portal NET Educação, há planos de aula sobre filmes humanistas que nos auxiliam na luta pela cidadania e direitos humanos. Acesse aqui na editoria Experiências Educativas.
 

 

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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