O filme Diários de Motocicleta (2004), dirigido por Walter Salles, teve ótima repercussão no Brasil e no exterior, tanto da crítica como do público, à época do lançamento. Aqui, o filme alcançou 750 mil espectadores, ótima bilheteria, e uma imensa cifra de DVDs, já que foi visto e revisto, inclusive nas escolas. As qualidades do filme justificam reprisá-lo sempre. Muitos identificam o filme como nacional, mas poucos sabem que o roteirista José Rivera é um competente dramaturgo porto-riquenho. O título é uma coprodução muito bem sucedida, que reuniu Argentina, Brasil, Chile, Reino Unido, Peru, EUA, Alemanha e França.  Inspirado nos diários do jovem Ernesto (Che) Guevara, o filme nos leva a viajar com os protagonistas por várias regiões da América Latina. 

 
Ao final, a canção Al otro lado del río, do compositor uruguaio Jorge Drexler (vencedor do Oscar 2005 de melhor canção) nos toca e sentimo-nos como o jovem Che: que vê os latino-americanos como um único povo, que partilha uma mesma história de exploração colonialista que contribuiu para a crônica desigualdade social. Hoje, este sentimento não é tão óbvio. No passado o Brasil já esteve mais próximo culturalmente dos países de língua hispânica da América Latina. 
 
Pensando na música, as canções latino-americanas sempre fizeram sucesso no Brasil, até mesmo na era de ouro do rádio, quando sambas e marchinhas imperavam aqui. Nesta época, anos 40 e 50, boleros, guarânias e tangos também embalavam os brasileiros. Trio Los Panchos, Bievenido Granda, Augustin Lara, Carlos Gardel, entre outros artistas, fizeram sucesso. Já no período da ditadura militar (anos 70), estudantes e artistas se identificavam com as músicas de Mercedes Sosa, Victor Jara e Violeta Parra. Elis Regina fez sucesso, então, com as canções Los Hermanos (de Atahualpa Yupanqui) e Gracias a la Vida (Violeta Parra). Volver a los 17 (canção também da chilena Violeta Parra) foi sucesso na voz de Milton Nascimento e Mercedes Sosa. Havia um movimento artístico pela unidade da América Latina.
 
Na literatura, até os anos 1980 havia boa circulação de obras entre os países latinos. Pablo Neruda, Gabriel García Marques, Mário Vargas Llosa, Manuel Scorza e Eduardo Galeano eram lidos por mais brasileiros do que hoje. Com a chamada “globalização”, as editoras latino-americanas foram compradas por espanhóis (posteriormente ingleses e estadunidenses) e atualmente a circulação de livros em nosso continente é muito mais complicada. 
 
No cinema, era intensa a presença do cinema mexicano no Brasil nos anos 40 e 50. As comédias de Cantinflas (Mario Alfonso Moreno Reyes) eram tão populares quanto as de Chaplin e Mazzaropi. Os melodramas da indústria Pelmex (Películas Mexicanas) revelavam a matriz cultural latino-americana, que é a mesma de nossas telenovelas, tão forte no nosso imaginário cultural. Apesar de muitos profissionais do cinema mexicano terem estudado nos EUA, seus filmes tinham uma marca própria, diferente dos hollywoodianos, em que os latinos eram retratados como perdedores, bandidos e bêbados. Os filmes de maior sucesso, dirigidos por Emilio Fernández, com direção de fotografia do competente Gabriel Figueiroa, mostravam um indígena heroico e nobre. O trio de atores que interpretavam esses filmes eram Pedro Armendáriz, Dolores Del Rio e Maria Félix, estas verdadeiras musas para os brasileiros. 
 
      
   
Nos anos 70 e 80, outro tipo de cinema latino-americano passou a circular aqui, especialmente nos cineclubes. Eles valorizavam a cultura popular regional e mostravam a resistência política dos oprimidos, especialmente contra patrões e governantes. Filmes chilenos, cubanos, venezuelanos ou colombianos tinham público nos grandes centros urbanos, mesmo sendo filmes de produção simples. A estética estava a serviço da temática. Eram filmes de baixo orçamento, ousados esteticamente, mas sem estratégia de marketing. Filmes de longa metragem comerciais também fizeram sucesso, como Actas de Marúsia (produção mexicana, dirigido pelo chileno Miguel Littín, com Gian Maria Volontè no elenco).
 
No início dos anos 1980 (fase em que filmes censurados começaram a ser liberados), fez muito sucesso no Brasil uma produção estadunidense com temática latino-americana. Dirigida pelo grego Costa Gavras: Missing ou Desaparecido, um grande mistério (1982), Jack Lemmon interpreta um pai norte-americano, que nada sabia sobre os movimentos sociais no Chile e vai em busca de seu filho que está desaparecido. 
 
O fato é que, até meados dos anos 80, música, literatura e cinema nos mostravam os povos latino-americanos, cuja história e cultura têm profundas relações com o Brasil. A criação do Mercosul, em 1985, reuniu alguns dos países em torno da cooperação econômica. Porém, com a globalização, houve o fortalecimento das grandes potências e a hegemonia dos EUA na indústria cultural. A música brasileira toca pouco em nossas rádios, menos ainda ouvimos as canções latino-americanas. A literatura desses países quase não figura em nosso mercado editorial e, no cinema, vemos no máximo os sucessos argentinos. A impressão que se tem é que nosso conhecimentos de “los hermanos” se reduz ao futebol.
 
Cinema latino-americano e diversidade cultural
 
Como o cinema poderia contribuir para que conheçamos a cultura latino-americana? 
Os filmes podem ser uma janela importante para a nossa cidadania cultural, para que olhemos o continente latino-americano. Podem nos trazer as regiões, os povos, a complexidade das relações humanas e sociais. Temos uma história política comum e, ao mesmo tempo, há diversidade e hibridização cultural, cada país é único e vale ser conhecido e compreendido. 
 
O problema é que a maioria dos países tem produção incipiente enquanto outros estão melhores estruturados. Brasil, Argentina, México e Cuba têm indústrias cinematográficas fortes e significativas, com longas metragens. Não por acaso, são eles que tiveram larga cultura cineclubista, o que mostra a importância de não só produzir, mas ter um público habituado ao cinema. 
 
O México tem uma poderosa indústria cinematográfica. Ela, porém, enfrentou uma queda em função do acordo de livre comércio com os EUA (Nafta).  Ao contrário do Canadá, também integrante do Nafta, que soube proteger sua indústria audiovisual, o México aceitou acordos agressivos do mercado cinematográfico estadunidense, o que resultou, entre 1984 e 1993, na queda 71,6% na produção, chegando a somente 21,2 filmes por ano. A circulação internacional também foi drasticamente afetada, fazendo com que pouquíssimos filmes mexicanos chegassem a nós nos últimos anos. 
 
   
   
Alguns deles estão disponíveis em DVD: Como água para Chocolate (Alfonso Arau, 1993), Amores Brutos (Alejandro González Iñárritu, 2000), E sua mãe também (Alfonso Cuarón, 2001), O Crime do Padre Amaro (Carlos Carrera, 2002), O Violino (Francisco Vargas, 2005), O Labirinto do Fauno (Guillermo Del Toro,2006), Babel (Alejandro González Iñárritu, 2006),  Luz Silenciosa (Carlos Reygadas, 2007). Muitos deles são coproduções, fizeram boa carreira internacional, e alguns dos diretores se ligaram a indústria dos EUA, porém suas produções americanas não representam a cultura mexicana. 
 
A Argentina passou, na década de 1960, por um processo parecido com o do Brasil: teve um movimento cineclubista, ampliou o público e viu o surgimento do movimento denominado Nuevo Cine Argentino (no Brasil foi o Cinema Novo). Essa onda renovadora rendeu muitos filmes até a década de 1980, com ênfase na denúncia à ditadura militar. São exemplos dessa fase: A História Oficial (Luis Puenzo, 1985), que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986, e Tangos, o Exílio de Gardel (Fernando Solanas, 1985). Além de importante cineasta, Solanas foi também um parlamentar representativo da esquerda argentina. Muitas das canções de seus filmes foram compostas por ele e por seu amigo Astor Piazzola.
 
   
   
Na década de 1990, surge o que se chamou de segunda geração do cine nuevo, composta por excelentes profissionais formados nas escolas de cinema, com produções que estrearam no início dos anos 2000, auge da crise econômica argentina. O país conseguiu, mesmo nesse cenário, manter a produção cinematográfica por conta das suas sólidas escolas de cinema e dos acordos internacionais, com coproduções que garantiram a realização e a circulação internacional dos filmes. Essa nova geração tem a marca da diversidade, tanto nas temáticas como no estilo, do baixo custo das produções, da força dos roteiros que satisfazem tanto o público que busca uma história bem contada, como os que exigem um tratamento estético mais apurado. A crítica social e/ou política e o humor, mesmo quando se trata de um drama, estão sempre presentes. 
 
No ano de 2001, foi lançado um dos maiores sucessos mundiais dessa nova geração: O Filho da Noiva (Juan José Campanella, 2001), cujo diretor tem a maior projeção internacional. Depois deste sucesso, foi lançado no Brasil, do mesmo diretor O Mesmo Amor, a Mesma Chuva, realizado em 1999. O mesmo cineasta realizou também os ótimos Clube da Lua (2004), o vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro O Segredo dos seus Olhos (2009) e a animação Um Time Show de Bola (2013). O crítico Sérgio Rizzo, num artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 27/10/2003, sobre o título O Mesmo Amor, resumiu a produção deste cineasta: “ótimos diálogos, meia dúzia de personagens convincentes, alguns saltos narrativos habilidosos, um tom que mistura amargura e esperança: receita simples, resultado tremendamente eficaz”.
 
   
 
   
           
Outro diretor argentino que reúne dramas familiares, crítica social e humor é Daniel Burman, com os filmes: Esperando Messias (2000), O Abraço Partido (2004), As Leis de Família 92006), Ninho Vazio (2008), Dois Irmãos (2010) e A Sorte em suas Mãos (2012).
 
Marcelo Piñero é outro cineasta cuja criatividade e contundência tem feito boa comunicação com o público. O primeiro de seus filmes exibidos aqui foi Cinzas no Paraíso (1997). Depois vieram o ótimo Plata Quemada (2000), Kamchatka (2002) e O que você Faria (ou El método, 2005). 
 
Também um sucesso mundial argentino foi Nove Rainhas (2001), de Fabián Bielinsky. O filme traz o ator Ricardo Darín, estrela de O Filho da Noiva e de inúmeros sucessos dessa nova fase do cinema argentino. Seu carisma contribuiu para o sucesso do cinema argentino. Uma atriz octogenária que conquistou o público interpretando dramas com ótimas pitadas cômicas foi China Zorrilla, que atuou em Conversando com Mamãe (Santiago Carlos Oves, 2004) e Elza & Fred (Marcos Carnevale, 2005)
 
Outros bons diretores dessa nova onda que realizaram filmes que têm circulado internacionalmente, inclusive no Brasil, são Carlos Sorín: Histórias Mínimas (2002), O Cachorro (2004), A Janela (2008) e Filha Distante (2012); Lucía Puenzo: A Prostituta e a Baleia (2004), XXY (2007) e O Médico Alemão (2013); Lucrecia Martel: O Pântano (2001), Menina Santa (2004) e A Mulher Sem-Cabeça (2008); Pablo Trapero: Mundo Grúa (1999), Família Rodante (2004), Nacido y Criado (2006), Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante Branco (2012).
 
Bem diferentes entre si, mas que têm em comum o fato de nos aproximarem dos argentinos são Herencia (Paula Hernández, 2001), Valentin (Alejandro Agresti, 2002) Café dos Maestros (Miguel Kohan, 2008), O Homem do Lado (Mariano Cohn, 2009), Las Acácias (Pablo Giorgelli, 2011), Um Conto Chinês (Sebastián Borensztein, 2011), Medianeras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual (Gustavo Taretto, 2011), Infância Clandestina (Benjamín Ávila, 2012)
 
A estratégia argentina, de procurar coprodutores vem sendo seguida por outros países latino-americanos, o que tem permitido que seus filmes cheguem até nós para ampliar o conhecimento sobre nosso próprio continente. Mas isso será tema do próximo artigo.

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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