A História do Brasil, por muito tempo, apresentou o cangaço a partir de uma visão parcial e aterrorizante. Tinha-se a imagem de um bando de homens que espalhavam o terror por onde passassem. Essa visão simplista foi disseminada na primeira metade do século XX, também para justificar a incompetência da polícia, constantemente desmoralizada pelos cangaceiros, e não menos violenta e arbitrária quanto eles. A imprensa assumiu essa narrativa assim como muitos livros didáticos.

Entre os anos 1930 e 1950, alguns grupos como os comunistas e outros líderes de esquerda olharam para o fenômeno do cangaço de forma diversa, percebendo-o como um movimento social revolucionário, símbolo da resistência armada contra o latifúndio. Seus líderes, Lampião, Corisco e outros cangaceiros, foram percebidos como verdadeiros heróis nacionais. Alguns os viam como uma espécie de Robin Hood. A literatura de cordel expressa bem esse olhar para Lampião como um grande injustiçado, portanto, um justiceiro. 

Nos anos 1960, chega até nós a perspectiva do banditismo social analisada pelo historiador inglês Eric Hobsbawn, que vê o fenômeno como uma forma primitiva de protesto social organizado, fruto das injustiças sociais da ausência do Estado, mas sem apontar para qualquer projeto de transformação social. Os estudos atuais sobre o cangaço trazem esta visão, compreendendo-o como única saída de sobrevivência, ora com o tom da vingança, em virtude de injustiças praticadas pelos governantes ou coronéis, ora com o tom da ilegalidade, da fuga por crimes pessoais.

Virgulino Ferreira da Silva, conhecido como Lampião, sintetiza a figura do cangaceiro. Vítima de uma injustiça – seu pai foi assassinado pela polícia – jurou vingança e, junto com dois irmãos, passou a integrar um grupo de cangaceiros, tornando-se seu maior líder. Viveu por 17 anos no cangaço. Sua figura é ambígua, como a maioria dos cangaceiros: consta que fazia acordo com coronéis, era totalmente devoto ao Padre Cícero, com quem se encontrou uma vez, e que tinha hábitos aburguesados, como tomar whisky escocês e usar perfume francês. 

A morte de Lampião, de Maria Bonita e seu bando foi anunciada com euforia, em julho de 1938, “tranquilizando” muitos lares que, Brasil afora, suspeitavam que Lampião poderia entrar pela janela a qualquer momento. Todos os cangaceiros pegos foram decapitados e suas cabeças expostas por muitos anos em museus pelo Brasil.

Essas histórias atiçaram a criatividade dos cineastas. Ainda na fase do cinema mudo, foram tema de vários filmes.  O Cangaceiro (1953) pode ser considerado o disparador da série de filmes sobre o cangaço, chamada de Nordestern por alguns críticos. O apelido é uma referência ao gênero americano western, embora guarde diferenças. Uma delas é que o cowboy é um solitário, enquanto os cangaceiros andavam sempre em bando. O Nordestern, aliás, é o tema do ótimo livro da jornalista Maria do Rosário Caetano Cangaço, o Nordestern no Cinema Brasileiro, com entrevistas e textos preciosos para compreender a representação do cangaço em nosso cinema.

O Cangaceiro, cujo roteiro e a direção têm Victor Lima Barreto como responsável, teve os diálogos a cargo da escritora Rachel de Queiroz. A obra teve enorme repercussão internacional, pois ganhou o prêmio de melhor filme de aventura e melhor trilha sonora (Mulher Rendeira) no Festival de Cannes de 1953. O gênero da aventura prevê uma trama emocionante com muitas perseguições e confrontos, o que está presente nas histórias do cangaço. Quase todas serão inspiradas nas histórias e lendas dos cangaceiros mais famosos, como Lampião e Maria Bonita, Corisco e Dadá, ainda que os nomes dos personagens sejam outros. 

A estrutura do filme O Cangaceiro, além das perseguições, tem como eixo um herói – Teodoro – que é antagonista do cangaceiro chefe do bando, conhecido por Capitão Galdino. Teodoro não é um cangaceiro típico, ele demonstra ser honesto e ponderado. A pergunta que fica no ar é ‘por que um homem tão bom está metido no cangaço?’. A resposta está na história de Teodoro, que ficou órfão cedo, foi educado por padres, mas sem querer, se meteu em uma briga e matou um homem, tornando-se foragido da polícia. O filme sugere que ele não deveria estar ali, é um cangaceiro “desajustado” e seu olhar para a mocinha Olívia faz o espectador esperar que eles sairão juntos dessa história e serão felizes para sempre.

Olívia é uma linda professora, ingênua, frágil, confiante que será protegida pelo herói. Ambos têm estudo e “não merecem estar naquela situação precária”. Já o líder do bando, Capitão Galdino, é um personagem mais simples, sem crises existenciais ou de identidade, já que sempre foi cangaceiro. Ele rivaliza com Teodoro, comete atrocidades, mas não é necessariamente o vilão da história. Há cenas em que demonstra sua religiosidade e seu apreço pelos pobres, o que provoca simpatia. O verdadeiro vilão é a polícia, representada pelas “volantes” (grupos que perseguiam os cangaceiros), compostas pelos “macacos” (soldados ou contratados integrantes das volantes). Há ainda Maria, um contraponto à mocinha Olívia, pois vive no bando com os cangaceiros e demonstra ser mais maliciosa.

O sucesso internacional de O Cangaceiro provocou uma sequência de filmes com esse tema. Em 15 anos, até o final da década de 1960, foram realizadas 24 obras com a mesma estrutura dramática e quase sempre com o mesmo Milton Ribeiro, no papel do terrível cangaceiro principal que se contrapõe a um mocinho, normalmente um cangaceiro deslocado, pois está nessa situação por algum equívoco: é perseguido da justiça por um crime que cometeu sem querer, está vingando algum parente, lavando a honra, enfim, ele “não é mau”, tem bom coração e deseja sair daquela vida. As mocinhas serão sempre lindas, frágeis e passivas, com exceção dos filmes sobre famosas cangaceiras, como em Maria Bonita, Rainha do Cangaço (Miguel Borges, 1965).

Vale registrar como o tema do cangaço não ficou apenas nos gêneros drama e aventura. A comédia também aparece nessa filmografia, desde O Primo do Cangaceiro (Mário Brasini, 1955), com Chico Anysio, Zé Trindade e outros humoristas. O Lamparina (1964), com Mazzaropi, e os Trapalhões, em O Cangaceiro Trapalhão (1983) e Os Trapalhões em O Auto da Compadecida (1987) também vão se valer da popularidade do cangaço. E nos anos 1970, foram realizadas pornochanchadas como As Cangaceiras Eróticas (1974) e A Ilha das Cangaceiras Virgens (1976), ambas dirigidas por Roberto Mauro.

Nos anos 1960, com a efervescência política do momento, o cangaço ganhou um novo olhar. Alguns filmes passaram a abordá-lo de forma muito mais complexa e inovadora. Um bom exemplo disso é o documentário Brasil Verdade (1968), que se tornou um clássico.  Ele é uma compilação de quatro filmes de média metragem realizados em 1966/67, com produção de Thomas Farkas e trilha sonora composta especialmente por Gilberto Gil. Um deles, Memória do Cangaço, foi escrito e dirigido por Paulo Gil Soares. Além da nova abordagem, enriquecida com depoimentos poderosos de testemunhas do cangaço, constam as imagens inéditas de Lampião, filmadas por Benjamin Abrahão, o mascate que tinha obsessão por filmar o “cangaceiro herói”. Parte dessas imagens foi restaurada e integram o filme O Baile Perfumado (1996), que conta a história desse mascate.

Outro filme impactante, marca do Cinema Novo, é Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964), que inverte totalmente a estrutura dos filmes anteriores. A trama traz Manuel e Rosa (interpretados por Geraldo Del Rey e Yoná Magalhães), um casal de trabalhadores da terra, protagonistas da trama. Eles representam o senso comum, o camponês injustiçado, perseguido pela polícia, que oscila entre o fanatismo religioso (Deus), e o cangaço (o Diabo), e que busca uma vida melhor. A história traz, ainda, Antônio das Mortes (Maurício do Valle), que representa a polícia, e o cangaceiro Corisco (Othon Bastos). Embora haja uma luta entre os dois, eles não são necessariamente antagonistas. Ambos são matadores, condenados à violência pelo “destino”, mas sensíveis às desigualdades sociais. Antônio das Mortes diz “matei, porque não posso viver descansado com essa miséria”. E, ao final, Corisco sugere para o casal a fuga, para continuarem lutando por uma vida melhor, mas com armas. Sua fala é: “homem nessa terra só tem validade quando pega nas armas pra mudar o destino. Não é com rosário não, (…) é no rifle, no punhal”.

Este filme integra o movimento do Cinema Novo, que defendia o cinema como instrumento de conscientização política. O personagem de Antônio das Mortes aparecerá novamente em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), que deu a Glauber o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes. Nesta obra, ele se utiliza da ópera e do cordel. Menos conhecida como Deus e o Diabo, é considerada por muitos críticos a obra prima de Glauber.

Por fim, é importante discorrer sobre um filme inovador do período da retomada do cinema brasileiro, nos anos 1990, que é Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996). Um dos primeiros filmes da cinematografia pernambucana recente, transgride todas as estruturas dramáticas dos filmes anteriores e tem como mote a história de Benjamin Abrahão, o mascate libanês, secretário de Padre Cícero, que fica amigo do bando de Lampião para filmá-los. Ele mostra o líder dos cangaceiros como um homem elegante e vaidoso, matador implacável e também amante do whisky e do perfume francês. O título do filme se refere a um baile que eles realizam no meio do mato, para o qual se arrumam e abusam dos perfumes. Ao utilizar recursos como o plano sequência, uma trilha sonora com o manguebeat de Chico Sciense & Nação Zumbi e um cenário multicolorido, o filme subverte o imaginário do cangaço e do nordeste. Opção interessantíssima para o público jovem se aproximar do tema. 

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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