Retomo o tema do cinema, ou melhor, do audiovisual (na atualidade, muitos filmes são feitos no suporte do vídeo e contam com espaços de veiculação diferentes do cinema) e da escola. Agora, o foco é quanto à abordagem dessa instituição pelos realizadores, particularmente no documentário. No início, pretendia discutir o filme argentino “A Educação Proibida” (2012), no entanto, a recente disponibilização online do documentário brasileiro “Quando Sinto que já Sei” torna esse trabalho um objeto privilegiado. Além de abordar o contexto local, ele possui algumas similaridades com a primeira obra. É válido notá-las. 

Ambos os filmes utilizam basicamente depoimentos de educadores, gestores e professores. O enfoque dos trabalhos é sobre o que podemos chamar de “modelos alternativos” de educação. Mais do que a ideia da “desescolarização”, defendem que as relações escolares sejam mais democráticas e os estudos contemplem as motivações e os interesses dos alunos. Grosso modo, a crítica básica é que a “educação tradicional” preocupa-se demais com conteúdos, cujo significado é opaco para os estudantes, tendo insuficiente preocupação em construir situações que favoreçam a autonomia e a criatividade das crianças e jovens.
 
No caso de “A Educação Proibida”, essa contraposição entre o “alternativo” e o “tradicional” é realçada pelo procedimento um tanto duvidoso de encenação de situações do cotidiano escolar, em cenas inseridas em alguns momentos do filme. O problema dessa estratégia é que ela possui tons muito carregados de caricatura. Em verdade, esse tipo de simplificação caracteriza o próprio argumento inicial de que a educação escolar nasce e desenvolve-se, sobretudo, como um processo de produção de trabalhadores e cidadãos, bem ajustados, em determinado espaço nacional. A educação escolar, assunto complexo, tem historicamente esse elemento, mas também outras dimensões, como as possibilidades de acesso aos conhecimentos que permitem o esclarecimento individual e a libertação coletiva. Por isso, o direito à educação foi sempre uma bandeira dos trabalhadores.
 
“Quando Sinto que já Sei” não firma argumentos tão incisivos e adota um tom, por assim dizer, mais modesto e menos publicitário do que o filme argentino. Dá a conhecer certos aspectos de experiências que procuram novos modos de educação. Felizmente, de modo diferente, apresenta também trabalhos de escolas públicas. No meu entender, com razão, o documentário “A Educação Proibida” foi criticado por parecer excessivamente privatista e ensejar uma desqualificação da escola pública (ver, por exemplo, essa crítica).
 
Se a procura do conhecimento por meio do audiovisual é válida, as obras em questão parecem não utilizar de maneira mais rica os recursos e as possibilidades do meio. Curiosamente, embora os filmes acabem fazendo o elogio das relações (enfatizadas, por exemplo, em falas de José Pacheco e Tião Rocha, no filme brasileiro), eles são pouco “relacionais”.
 
Geralmente existe uma “relação” entre um sujeito que fala e a câmera. Poderíamos ler os pronunciamentos feitos no filme num livro: as opiniões seriam as mesmas. Além disso, como os sujeitos não são claramente questionados pelos realizadores (que parecem, desde o início, aderirem ou terem predisposição positiva ao que é dito), pouco surge de contraditório e as características intrínsecas e dificuldades dos modelos alternativos são pouco aprofundadas.
 
Às vezes se cai num discurso de “boa vontade” pedagógica, pela exclusão de elementos contextuais que mereciam discussão. Por exemplo, a escola tende a formar por meio de modelos que enfatizam a competição. Isso por que a sociedade é competitiva ou por que ela quer? Silêncio. Não se trata de dizer que a mudança é impossível, dado o peso das estruturas, mas de saber mais como – a despeito desse peso – estas experiências procuram avançar. Os filmes poderiam aprofundar esse aspecto.
 
“Quando Sinto que já Sei” cresce como obra documental nos momentos, infelizmente raros, de registro de situações do cotidiano escolar, como a da briga entre dois estudantes e a intervenção da professora. Em casos assim, não apresenta um discurso de convertidos, mas suas práticas. De certa maneira, ambos os filmes observam pouco a escola alternativa, embora apresentem muitos discursos sobre ela. Observações (mais ou menos estruturadas) e outras estratégias de conhecimento a partir do audiovisual (além dos relatos) poderiam tornar os trabalhos mais densos. Talvez pudessem, desse modo, consolidar ideias que sugerissem adaptações ou transferências para os modelos escolares mais tradicionais.
 
Uma opção central de todo sujeito de conhecimento é entre a amplitude e o aprofundamento em relação ao seu tema. Nos casos discutidos, a propósito dos modelos alternativos de educação, estamos mais no primeiro registro. Desconfio que o aprofundamento num número menor (ou único) de casos poderia ter valor, em termos de mostrar o que essas escolas, para além de seu “charme” alternativo, têm de “normal” e que possam ensinar aos sistemas mais amplos. Nessa ideia ressoa uma advertência do educador francês Bernard Charlot, sobre o risco de contrapor “escolas ideias” e “escolas reais”. Ao fim e ao cabo, diz ele: 
 
Devemos trabalhar com os professores “normais” e, desse ponto de vista, desconfio dos discursos sobre a escola ideal. Há exemplos de escolas, como a Escola da Ponte, de Portugal, que impressionam muito. Claro que essa escola é muito interessante, fora da norma, mas esse é o problema: ela está fora da norma. Entre os professores muito emocionados por esse exemplo, quantos por cento querem entrar numa aventura dessas? E qual a função real desses exemplos heroicos? (O negrito da citação é meu, e a entrevista completa pode ser lida aqui)
 

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Autor Richard Romancini

Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.

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