Existe uma certa ordem no consumo do cinema. Um costume já inserido na nossa vida cotidiana que, quando é modificado, provoca incômodo ou estranhamento. Falo do tempo de duração dos filmes que chegam às salas de cinema. Estamos bastante acostumados com a duração de uma hora e meia a duas horas e meia. É esta duração que predomina comercialmente.
É o que se chamou de ‘longa-metragem’, em referência ao tamanho da fita que vinha enrolada em carretéis, para serem utilizados nos projetores do passado, que foram aposentados com a chegada da projeção digital. O filme de antigamente não cabia em um único rolo, ele era cortado e embalado em latas de metal. Um longa-metragem vinha em duas ou três latas e era necessário trocar o rolo durante a projeção.  Os bons projetistas de outrora eram aqueles que faziam a troca sem qualquer sobressalto, o público sequer percebia que os rolos se alternavam na tela, imerso na narrativa que se descortinava.
O “longa” ainda é um modelo comercial muito rentável e interessante. Inserido na ordem do consumo de entretenimento, um programa de família, uma tarde com amigos ou o simples ato de desligar-se do cotidiano. Ele permite que o ingresso valha a pena, vez que não passa tão rápido. Ninguém pagaria o estacionamento do shopping e a entrada do cinema para ver um filme de 20 minutos. A tecnologia mudou e nada nos impede hoje de ter padrões diversos. Mas a maioria de nós tem no imaginário as boas duas a três horas para curtir um filme. Mais do que isso vira um compromisso mais difícil de cumprir.
Mas há exceções, mesmo no cinemão. “Avatar” (2009), por exemplo, contava com 2 horas e 42 minutos e foi tachado de um filme longo. “Titanic” (1997) contou com a duração de cerca de 3 horas e lembro-me de reclamações para as salas exibidoras que não contavam com pausas. Mas quando aquele imenso navio ficava dependurado na vertical, boiando à nossa frente na tela grande, valia cada minuto da espera. James Cameron fez alguns filmes longos, mas com cenas visualmente deslumbrantes.
Steven Spielberg dirigiu filmes bastante grandes e com grande apelo de audiência. Em “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), com suas quase 3 horas, acabamos nos esquecendo do tempo em vista da quantidade de sequências em que precisamos segurar a respiração por conta da tensão e da ação. Já “A Lista de Schindler” (1993) é um filmão de mais 3 horas que nos mantém atentos e em estado de abismal incredulidade, por conta da dor, da violência, do sofrimento, da irracionalidade, da poesia.
Clássicos longuíssimos do passado como “Lawrence da Arábia” (1962), com mais de 3 horas meia e intervalo, “Ben Hur”(1957) e “E o vento levou…”, (1939), ambos com 4 horas, são curtos perto de “Berlin Alexanderplatz” (1980), com 15 horas de duração. A projeção teve intervalos frequentes e contou com horário de jantar. Virou série, porém não foi montado originariamente para esta formatação. Vemos que uma narrativa bem urdida e imagens deslumbrantes foram um meio de mobilizar todos os nossos sentidos e fazer-nos esquecer de nós mesmos.
Nossos alunos vieram ao mundo num contexto muito diferente e poderíamos imaginar que duas ou três horas de um filme seriam impossíveis para uma geração acostumada à rapidez das imagens, às várias atividades simultâneas, ao movimento. No entanto, o que vemos, é o contrário. A tecnologia do streaming e a possibilidade do pay-per-view desencadeiam um consumo muito maior de produções cinematográficas, com escolha de programação, hora e lugar para fruí-la
E nossos estudantes não só consomem filmes por meio de canais a cabo, como têm uma imensa escolha das séries que chegam pelo sistema de streaming. Eles fruem esta produção como longas (longuíssimas!) metragens.  Separadas em capítulos e em temporadas, várias dessas séries contam com uma linha narrativa única, diferenciando-se das comédias de situações ou seriados de ação que apresentam histórias cuja trama não se mantém por mais de dois capítulos. São, hoje, obras maiores, com orçamentos milionários, atores consagrados e roteiros absolutamente envolventes e bem trabalhadas. Muitos de nossos alunos gostam de ver os vários episódios em sequência, horas a fio.
Mas a fruição é outra, a obra é outra e o meio é outro. O cinema do Século 20 convida ao mergulho no filme, à suspensão do tempo, à imersão na arte. Apagam-se as luzes e o tempo perde o sentido, perde o parâmetro. Mesmo sendo ato de fruição coletiva, a sala escura do cinema tem a função de nos fazer viajar sozinhos naquilo que estamos vendo. Quando o filme acaba retomamos às nossas vidas, sentindo um atordoamento e certa incompreensão do entorno. É necessário respirar novamente o real antes de deixar a poltrona, experiência que, no século 21, nossos alunos experimentam por meio das tecnologias de realidade virtual, com óculos 3D.
Entender a diferença entre a imersão no cinema e a imersão na realidade virtual pode nos ajudar a compreender o que mobiliza nossos alunos, que experiências sensoriais subtraiam as gerações mais velhas, por horas, e o que é necessário para subtrair os nossos jovens e mobilizar todos os seus sentidos hoje. E o tema não fica no cinema. A questão está posta para as nossas salas de aula.

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Ricardo A. B. Lourenço

Ricardo Lourenço é bacharel em Direito, licenciado em Filosofia e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Atua como professor de Educação para as Mídias e Filosofia para o ensino médio, e trabalha com a difusão de cineclubes em escolas.

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