A resposta à pergunta título é bastante óbvia: sim! Filme é como qualquer outro produto cultural. Possui vertentes e possibilidades que podem simplificar ou tornar difícil a sua fruição. Há filmes fáceis de serem compreendidos pela maioria das pessoas. Outros necessitam de um embasamento, um conjunto de saberes anteriores que permitirá o entendimento e, principalmente, algum prazer intelectual.

Tomemos um clássico do cinema nacional: “Terra em Transe” (1967) de Glauber Rocha, possivelmente a maior expressão do movimento denominado Cinema Novo. O filme é um verdadeiro tratado político do Brasil, transpassado de poesia, com estética e linguagem muito simbólica. Glauber Rocha fez o filme que queria, não o que a audiência queria. Foi criticado pela própria intelectualidade brasileira, sob o argumento de que o filme não atingiria as massas e, portanto, não se adequava ao “papel do cinema politizado”, o que era valorizado no delicado momento em que foi feito. Durante o regime militar, esperava-se do cinema, para além de expressão de arte e criação, uma função clara. Rótulos como comercial, político, moralizante, anestésico, reacionário, entre outros, identificavam as produções.

Faz alguns anos que fiz um experimento em aula. Propus a meus alunos que víssemos juntos vinte minutos de “Terra em Transe”. Vinte, não mais que vinte, contando a silenciosa apresentação do elenco e toda a abertura em que sobrevoa-se o litoral da não tão fictícia Eldorado. Antes de iniciar o filme, apresentei uma visão geral e panorâmica da temática e da força do cinema de Glauber Rocha. Comentei algo que tenho por verdade: “Terra em Transe” é filme complicado e ponto. Coloquei-me onde devia e assumi (como ainda assumo) que o filme se apresenta dificultoso para mim. 

O resultado foi o que eu esperava. Uma pequena parcela não aguentou os vinte minutos, a maior parte dos alunos viu o trecho, mas confessou não gostar. Um ou outro aluno (possivelmente um daqueles que queria fazer cinema ou teatro) disse que gostaria de continuar com o exercício por outros vinte minutos.

Filme difícil. Difícil sim, pois não propõe que a audiência goste, mas sim que ela pense sobre o que viu e pondere o grau de compreensão sobre o que foi visto. Difícil, pois assume que o cinema pode ser uma discussão, um modelo de provocação intelectual com potencial de nos atingir pessoalmente. A sua dificuldade decorre exatamente de nos mostrar que estamos tão ensimesmados que acabamos por negar a diferença – principalmente aquela que não compreendemos. Um certo “não gostei, então não vejo” tão comum em nós mesmos.

Após “Terra em Transe”, como forma de “fazer as pazes” com meus alunos, proponho que vejam filmes que estão no meio do caminho entre um filme difícil e um filme fácil, mas que mantenham uma proposta de questionamento. Filmes que conseguiram colocar para pensar um grande número de pessoas, sem a mesma profundidade da obra de Glauber, mas com aceitação mais ampla. Não são melhores nem piores. São outros filmes, com objetivos e formatos diversos. Compará-los é perder o foco do exercício.

Tomo o canetão e disponho na lousa branca da sala: Maratona Jim Carrey. “O Show de Truman” (1998), “O mundo de Andy” (1999) e “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004). Incrédulos, meus alunos anotam. Pensam que encontrarão o fanfarrão “Máscara” ou o pastiche escancarado de “Debi e Lóide”. Encontram filmes delicados, intrincados, engajados e bastante críticos. Conhecem um Jim Carrey inteligente e corajoso. 

São filmes que permitem a reflexão e a fruição, que permitirão aos jovens olhar de forma diferente para o cinema. Como todo e qualquer tipo de aprendizado, há momentos em que a construção de saber precisa de apoios, anteparos para que o jovem possa subir à análise crítica de obras mais complexas.

Filmes difíceis são difíceis mesmo. Cabe a nós, educadores, tornarmos a fruição mais diversificada e termos a compreensão de que ela é fruto de tempo e de reflexão. Não cabe aos diretores tornarem mais simples suas ideias, cabe a nós tornarmos as nossas mais complexas. Para isso, a mediação do professor é fundamental.

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Ricardo A. B. Lourenço

Ricardo Lourenço é bacharel em Direito, licenciado em Filosofia e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Atua como professor de Educação para as Mídias e Filosofia para o ensino médio, e trabalha com a difusão de cineclubes em escolas.

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