O Estado Brasileiro é laico. Oficialmente, a separação entre a igreja e o Estado aconteceu em 1889 com a instauração do regime republicano. Porém, esta separação parece ainda não estar consolidada. Vemos símbolos religiosos em espaços públicos, feriados religiosos na agenda nacional e o ensino religioso nos currículos oficiais de várias cidades e estados. O sistema escolar público reflete essa ambiguidade, embora seja muito importante garantirmos a laicidade da escola. 

Temos uma herança religiosa que vem da colonização portuguesa, cuja dominação não se deu apenas pela conquista de terras e pela exploração de nossas riquezas, mas fortemente por meio da catequese, o que implicava na aculturação dos índios e na imposição da fé católica. Os jesuítas, responsáveis pela educação por quase três séculos, justificavam a escravização dos negros e proibiam qualquer culto que não fosse cristão. Na tradição jesuítica a educação e religião integraram um mesmo processo, que excluiu qualquer outra crença. 
 
A religião é cultura. Desde a pré-história os mistérios da existência inquietaram os seres humanos e as religiões se constituíram. O termo “religião” tem origem latina e estudiosos dão duas explicações para esta palavra: uma vem do termo “religare”, que se refere à ligação entre o mundo dos humanos e o mundo divino; a outra vem do termo também latino “relegere” que quer dizer “reler”. Para muitos, esse significado é interpretado como prestar atenção às leituras, não se enganar, estar certo de ter praticado boas ações, ter feito boas orações. Há pessoas que vivem tranquilamente sem religião, mas não existe nenhuma sociedade sem religião.
 
No século XX, foram formados muitos estados laicos, como o Brasil, o que significa “imparcialidade em relação aos assuntos religiosos”. A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada após a 2ª Guerra Mundial, em 1945, e proclamou, três anos depois, a Declaração Universal dos Direitos do Homem que coloca a liberdade religiosa como questão de alta relevância. Nela, o parágrafo 18, diz:
 
Todos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou sua convicção sozinho ou em comum, tanto em público quanto em particular, pelo ensino, práticas, culto e feitura dos rituais.
 
Não é difícil concluirmos que liberdade de religião e de não religião diz respeito aos direitos humanos, assunto caro à sociedade como um todo e, especialmente, às escolas. Manter a laicidade da escola não significa não falar de religião, já que cabe à escola manter viva a cultura construída pela humanidade. Mas a escola não pode professar uma religião e impô-la aos que professam outros cultos. Não pode permitir manifestações preconceituosas e de intolerância. A escola pública ou privada deve abordar a religião como cultura, como parte da história. Precisa reconhecer todas as religiões como parte das escolhas dos diferentes indivíduos.  Para isso, é preciso conhecer, buscar mais conhecimentos sobre a história das religiões e suas manifestações na cultura cotidiana. Como se sabe, o preconceito é fruto da ignorância.
 
Os educadores têm suas opções religiosas, mas é preciso ter clareza sobre os limites entre crenças pessoais e práticas religiosas no espaço coletivo que é a escola. Práticas comuns como cantar músicas religiosas antes da merenda e fazer orações, não deveriam acontecer em uma escola laica, por respeito a todos os que ali estão e não comungam da mesma crença. 
 
Por outro lado, o estudo das culturas e das religiões tem que ser preservado, o que representa uma oportunidade muito rica para o desenvolvimento da alteridade e do respeito ao outro. São comuns as manifestações de intolerância por parte de familiares, especialmente neopentecostais, que não querem que seus filhos estudem a cultura africana, por considerarem tratar-se de “macumba” ou “coisa do diabo”. Há relatos de professores de arte e de educação física que, ao trabalharem com a capoeira na escola, enfrentaram familiares que proibiram a participação de seus filhos.
 
A escola – entendendo-se aqui a gestão escolar e os professores – não pode se curvar perante essas reações, pois tem o dever de cumprir a legislação vigente no país, o que inclui a Lei Federal 10.639 de 9/1/2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e incluiu o ensino da história e cultura afro-brasileira no currículo nacional. O fato de uma música popular citar algum termo religioso ou um filme apresentar algum culto não faz disso uma prática religiosa e não pode ser motivo de censura. Isso vale para qualquer expressão cultural. As diferenças não podem ser o impeditivo para a aprendizagem. 
 
A boa notícia é que há relatos de gestores que estão chamando os pais para esse diálogo tão necessário. Foi o caso de uma escola que programou uma visita de suas crianças ao Museu Afro Brasil. Sentindo que poderia haver reação preconceituosa por parte de alguns familiares, antecipou-se para explicar o propósito da atividade e a importância da cultura afro-brasileira na formação dos alunos. A adesão ao passeio foi total.
 
Alguns filmes, que abordam a questão da diversidade religiosa, podem nos ajudar a construir uma cultura de paz e a conhecer as religiões na perspectiva do combate aos preconceitos. O curta metragem Carnaval dos Deuses, de Tata Amaral, apresenta uma conversa espontânea entre crianças, em uma situação de festa carnavalesca na escola. Um dos meninos pertence a uma família judaica e narra a cerimônia de circuncisão de seu irmão menor, despertando a curiosidade de seus colegas. Uma garota não quer participar da festa da escola porque “carnaval é pecado”. A conversa se desenvolve mostrando de forma saudável o entrecruzamento de discursos e de culturas familiares. Esse filme tem sido utilizado por educadores tanto entre as crianças, como nas reuniões de professores e de pais, provocando um debate sobre respeito à diversidade religiosa.  
 
O filme Vida de Menina, de Helena Solberg, baseado no livro homônimo de Helena Morley, conta a história de uma menina que vive em Diamantina (MG), no início do século XX. A família de seu pai é protestante e a de sua mãe é católica. Há várias cenas mostrando a importância da escola pública laica, no início do estado republicano, em contraposição à escola católica particular.
 
Há filmes nacionais que apresentam a diversidade e o sincretismo religioso no Brasil: os documentários , de Ricardo Dias, e Santo Forte, de Eduardo Coutinho, e a ficção Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, que conta a história real de um capoeirista na década de 1920. Não custa lembrar que é fundamental que o professor assista aos filmes com antecedência para pensar se são adequados à sua proposta e ao contexto dos alunos.
 
Os filmes estrangeiros também abordam essa temática. No espanhol A Língua das Mariposas, de José Luis Cuerda, o menino Moncho está construindo sua visão de mundo a partir da fé católica da mãe e da postura agnóstica e republicana do pai.  Seu professor, Dom Gregório, de ideologia libertária, é seu grande ídolo. Há uma conversa interessante entre o menino e o professor sobre a existência do inferno. Dom Gregório deixa claro tratar-se de um assunto da legislação da família e não da escola. Quando o menino diz ter medo do inferno, o professor o tranquiliza dizendo que o inferno é o ódio e a crueldade.
 
O ótimo filme franco-italiano A Culpa é do Fidel, de Julie Gavras, aborda de forma bem humorada a visão de mundo da pequena Anna, que se constrói a partir dos discursos da avó católica, dos pais militantes de esquerda e da babá que é anticomunista.  Sua vida escolar reflete a confusão ideológica da família, até que Anna sai da escola católica e vai para a escola pública, portanto, laica.
 
Outros filmes estrangeiros: o premiado Timbuktu, de Abderrahmane Sissako, co-produção França/ Mauritânia, mostra uma comunidade muçulmana no Mali, que sofre com um grupo de fundamentalistas no poder. O filme foca muçulmanos de vários matizes, rompendo os clichês que relacionam a religião ao terrorismo. O clássico Gandhi, de Richard Attenborough, apresenta a religião, identificada pelo líder pacifista como de não-violência. Outro clássico é O Pequeno Buda, de Bernardo Bertolucci. São filmes longos, mas que podem ser trabalhados por meio de pequenos trechos que apresentem aos alunos a diversidade de olhares sobre as religiões.
 
E, por fim, o filme do cineasta britânico Ken Loach Apenas um Beijo, apresenta um romance marcado pela intolerância religiosa. Passado na Escócia, conta a história de Casim, jovem DJ de origem paquistanesa, cuja família, arranja o seu casamento com uma prima, conforme a tradição muçulmana. Mas ele conhece Roisin, professora de música de uma escola católica. O casal sofrerá com os preconceitos tanto de católicos como de muçulmanos para ficarem juntos.  
 
Conhecer a história das religiões e reconhecê-la como cultura é um grande passo para a paz. A escola pode ser o espaço de diálogo e compreensão da religião como cultura e o cinema pode ser um meio privilegiado para trazer esse diálogo tão necessário. 
 

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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