Tenho insistido com professores para saber sobre sua familiaridade com o nosso cinema. A resposta é o que já se esperava: apenas uma minoria dos professores conhece o cinema brasileiro. E, como o preconceito nasce justamente do desconhecimento, grande parte assume que “não vê, porque só tem pornochanchada, palavrão e violência”. Curiosamente, o termo “pornochanchada” vem na fala até de professores jovens, que não vivenciaram os anos 1970/80, quando realmente eram exibidos muitos filmes eróticos, alguns de qualidade bem questionável. O que mostra que se trata de um imaginário e não necessariamente de uma experiência.

Outro comentário injusto em relação ao cinema nacional é a má qualidade do som. Essa crítica faria sentido há uns 20 anos, mas atualmente os filmes brasileiros são produzidos com a mesma qualidade técnica de som do que muitos filmes americanos ou japoneses. O que ocorria – e agora é mais raro – é que havia salas de cinema mal equipadas, aí o espectador sofria com o som. No caso do cinema brasileiro, o som ruim impactava diretamente no entendimento do filme. Esse problema não era percebido nos filmes estrangeiros, porque o espectador se fixa nas legendas para compreender o filme e muitas vezes não presta atenção no áudio.
 
O mesmo pode se dizer sobre os palavrões. Nossos filmes não têm mais palavrões do que os filmes dos EUA. Nestes, os palavrões são traduzidos para termos bem amenos. Em relação a esse tema, acho correto criticar uma linguagem chula desnecessária. Mas há contextos em que o palavrão faz parte da linguagem dos personagens, do contrário o filme perde o realismo (ou naturalismo, como alguns preferem dizer).
 
Em outros tempos, ver filmes alternativos, clássicos, os filmes ditos “não comerciais”, eram atitudes atribuídas aos intelectuais a quem “sabia das coisas”. Era mais comum que professores indicassem aos alunos esses filmes, como contraponto ao cinema hollywoodiano. Essa era uma época em que o cinema dito “de arte” tinha algum espaço nas salas das grandes cidades. Boa parcela da população urbana frequentava regularmente o cinema, que oferecia uma educação não formal. Nos anos 1980, filmes clássicos de grandes diretores europeus ou asiáticos ficavam meses em cartaz. Conhecer esses cineastas não era privilégio de meia dúzia de pessoas. Pelo menos nas cidades maiores, a oportunidade de uma programação variada era real. 
 
Ocorre que o cinema de rua encolheu, o ingresso ficou muito caro e o consumo de filmes passou a ser cada vez mais doméstico, individualizado. O cinema, aos poucos, deixou de ser um hábito cultural popular, consumido em multidão. Os filmes considerados “de sucesso”, aqueles com grandes verbas de marketing, tomaram conta da maioria das salas. Diminuiu o número de frequentadores das salas de cinema e a proporção de educadores que assistiam a filmes não comerciais seguiu essa onda. 
 
O professor é hoje um espectador que consome culturalmente aquilo que lhe é ofertado pela mídia. É nítida a influência cultural estadunidense na nossa sociedade, e os professores não se diferenciam. Com a precarização das condições de trabalho e da formação de professores, com raríssimos cursos de licenciatura que tratem da formação audiovisual, professores têm menos possibilidade de fruir e pensar o cinema. Para isso contribui, ainda, uma cultura escolar apoiada quase exclusivamente na cultura escrita, em detrimento da audiovisual. E a formação inicial de professores reproduz os mesmos vícios do sistema escolar que criticam. 
 
E como fica o cinema brasileiro nesse contexto? Há razões concretas para o desconhecimento dos filmes? 
Temos, hoje, produções brasileiras excelentes. Porém ainda é difícil que ela chegue ao grande público e, por consequência, ao professor. Vamos tentar entender o porquê. Ocorre que nossa indústria cinematográfica ainda não conseguiu se consolidar por completo. O cinema, que é ao mesmo tempo arte, cultura e negócio, precisa existir como indústria, para conseguir sobreviver no mercado cultural. Vamos explicar, um pouco, o que significa “existir como indústria”. Entre a ideia inicial e o filme na tela do cinema há um longo caminho a percorrer.
 
A primeira etapa é o desenvolvimento do roteiro, do projeto, elaboração de orçamentos que irão viabilizar a produção. Depois vem a pré-produção, quando se capta o dinheiro, são selecionados atores e locais, comprados os direitos autorais, construídos cronograma de filmagens, preparo de cenário e figurino, e etc. Nesses dois primeiros momentos, com exceção do trabalho artístico dos roteiristas, a parte administrativa se sobrepõe à criação artística. 
 
A terceira etapa é a produção, quando a filmagem finalmente se realiza, o que, em geral, acontece em algumas semanas. Neste momento, a parte artística realmente predomina (mas para realizá-la é preciso ter em caixa boa parte do dinheiro). A fase seguinte é a pós-produção, um momento fundamental, pois é o acabamento do filme. Ele inclui edição, montagem, finalização, mixagem da trilha sonora. Já a quinta etapa é a da distribuição, quando se cria o elo entre a produção e a exibição. Nas produções hollywoodianas é comum que a distribuição atue de forma independente, sendo realizada por uma equipe de marketing, descolada da criação artística. No Brasil, alguns cineastas preferem trabalhar com os distribuidores, para que a comercialização seja feita de acordo com a proposta do filme. Evento de lançamento, número de cópias, público-alvo, estratégias de distribuição são pensadas nesse momento. Há poucas distribuidoras independentes no Brasil, a maioria delas é multinacional, como Columbia e Fox. Está na mão delas divulgar o filme de maneira que garanta o sucesso comercial ou torná-lo invisível, devido a estratégias equivocadas.
 
A última etapa é a da exibição. É nesta etapa que o filme chegará – ou não – ao público. É o exibidor que tem as salas de cinema, que receberá do distribuidor a incumbência de promover uma pré-estreia. No caso de filme brasileiro, esse evento muitas vezes traz o elenco para conversar com o público. É o exibidor que decide em quais salas e horários o filme será exibido.
 
A lógica do exibidor é o lucro com a venda de ingressos. Nas grandes cidades, até é possível encontrar exibidores comprometidos com a arte e a cultura, em salas de cinema mais independentes, mas isso é cada vez mais raro, até mesmo em São Paulo. A maioria do mercado exibidor está tomado pelas chamadas salas multiplex, situadas quase sempre nos shoppings centers. O compromisso dessas redes exibidoras internacionais é com os filmes que eles acham que terão sucesso. É comum que os grandes lançamentos norte-americanos ocupem muitas salas de um mesmo complexo.
 
Não é difícil concluir o que se passa com essa cadeia produtiva. A maior parte dos exibidores não acredita no cinema brasileiro, porque esse imaginário de que filme brasileiro tem baixa qualidade também está na sua lógica de mercado. As poucas salas que “sobram” para os filmes que não são da grande indústria hollywoodiana, são divididas para os filmes europeus, latino-americanos, asiáticos e também alguns filmes brasileiros.
 
Quando disse que a indústria cinematográfica brasileira ainda está amadurecendo é porque, com as leis de incentivo à cultura, conquista-se recursos para as primeiras etapas. Então, estamos com uma forte e plural produção de filmes brasileiros. Filmes de alta qualidade técnica, criativos e dirigidos a um público variado. Mas, como as últimas etapas – distribuição e exibição – ainda estão nas mãos de empresas que não têm necessariamente compromisso com a arte e a cultura, muito menos a cultura nacional, essa produção não chega ao grande público.
 
E temos uma exceção que só confirma o que dissemos até aqui: há alguns anos foi formada a Globo Filmes que atua como produtora e distribuidora de filmes com forte diálogo com a televisão, com artistas conhecidos das telenovelas e seriados. Justamente porque tem força para distribuir. Esses filmes (quase sempre comédias) conseguem espaço no mercado exibidor. Se, de um lado, isso demonstra que é preciso investir nas etapas finais da produção, esses filmes contribuem para a ideia de que filmes brasileiros são “mais do mesmo”, isto é, refratam o que a televisão aberta já oferece fartamente. 
 
Por isso é muito importante que os educadores possam conhecer a excelente safra de filmes que o Brasil vem produzindo, especialmente nos últimos 20 anos. Para isso, é preciso esforço para abrir espaço nesse mercado cultural altamente competitivo. Inclusive porque o cinema brasileiro já está no currículo escolar desde o ano passado [leia aqui o artigo Cinema Brasileiro no Currículo Escolar, que aborda a lei 13.006, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação].
 

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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