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NET Educação, da censura ao cinema brasileiro desde os primórdios do século XX até a
ditadura militar. O cinema esteve entre as produções culturais mais perseguidas pela censura, o que causou muitos danos, uma vez que produzir cinema custa muito caro. Várias vezes, filmes censurados levaram a produtora à falência, brecando a carreira do diretor. Por isso, filmes deixaram de ser feitos. A censura abortava as ideias antes mesmo delas chegarem à fase de produção.
Ao final da ditadura, a constituinte de 1988 extinguiu todo tipo de censura. Seguindo a tendência mundial, o controle das produções audiovisuais começou a ser feita por classificação etária. Um órgão regulador passou a indicar a idade mínima necessária para assistir ao filme. Em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criando um sistema de classificação indicativa à produção audiovisual, especialmente filmes para o cinema e televisão, estendida posteriormente aos games. .
Vale perguntar se, depois de tantos séculos de tradição autoritária, em que uma visão era imposta a todos, indicando ou proibindo o que pensar, o que ver, ler, ouvir ou dizer, os adultos de hoje sabem exercer seu direito de escolha, de acordo com seus ideais e valores. Fomos preparados para ter esse discernimento sobre uma obra audiovisual?
Acostumados ao controle da censura, os adultos supõem que só serão exibidas as produções “autorizadas”. Não fomos acostumados a trocar de canal, desligar a TV ou, no caso do cinema, sair da sala de exibição. Se um programa excede os limites do que é considerado moralmente aceitável, a tendência é pedir CENSURA. Porém, como definir o que é moralmente aceitável, já que a moral é variável, segundo os valores de cada grupo, cada pessoa, cada família?
Recentemente, o filme A Serbian Film – Terror sem Limites, dirigido pelo sérvio Srdjan Spasojevic foi censurado no Rio de Janeiro tendo, em seguida, recebido a sentença de um juiz federal de Minas Gerais que proibia sua exibição em todo o território nacional, por apresentar cena com a simulação de abuso sexual de um recém-nascido. Em janeiro de 2012, o juiz federal Ricardo Machado Rabelo, proferiu sentença que liberou o filme. Veja o trecho da sentença em esclarece sobre o direito do cidadão de assumir a responsabilidade pela escolha das obras que deseja assistir:
Uma palavra final: vi o filme. Do início ao fim. O filme é realmente muito forte. Verdadeiramente impactante. O enredo é crudelíssimo. Se é arte eu não sei. Pode ser para alguns, para outros não. O que sei, contudo, é que se estivesse no cinema teria me levantado e ido embora. No entanto, como juiz, não posso ser o seu censor no território nacional, como me diz a Constituição Federal. Aliás, o que me garante a Carta Constitucional – não apenas a mim, mas a todo brasileiro – é o direito de me indignar, de recusar a vê-lo ou até mesmo o direito de me levantar e deixar a sala de sessão, levando comigo as minhas conclusões e convicções acerca da natureza humana, suas dimensões, limites e idiossincrasias. Aprendi com o desassossegado Fernando Pessoa “porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura” (Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, Cia das Letras, 2012, p. 82). Fica, assim, desde já liberada a exibição do filme “A Serbian Film” no Brasil, como permite e autoriza a Constituição Federal.
Essa nota contribui para a reflexão sobre a liberdade de expressão no cinema, pois entende que o Estado não deve tutelar o cidadão, mas informá-lo sobre o filme, deixando a seu critério a decisão de assisti-lo ou não. O juiz trata o cidadão como uma pessoa adulta e autônoma, que não precisa da tutela.
Um desafio da classificação indicativa: como saber o impacto de uma produção audiovisual?
O Ministério da Justiça é responsável pela classificação indicativa. A ideia não é censurar, mas orientar sobre o conteúdo das produções. Cabe aos adultos julgar se o produto é adequado para os menores sob sua responsabilidade. Inicialmente, a classificação apenas relacionava a faixa etária ao horário de exibição do programa na TV. Porém, nos últimos anos, o sistema vem sendo aprimorado, buscando uma forma de mensurar cenas que poderiam trazer malefícios aos menores de idade.
A mensuração quantitativa envolve o número de cenas de violência, sexo e drogas. Influenciada pelas pesquisas norte-americanas, procura medir o “impacto” de uma obra no espectador, relacionando, por exemplo, o número de tiros vistos à possibilidade de uma criança se tornar violenta no futuro. O mesmo princípio vale para cenas de sexo e drogas. Nessa lógica, há programas de TV e filmes que não apresentam menores de 18 anos consumindo bebida alcoólica. Porém, a omissão impede que tal problema seja abordado.
O controle qualitativo se baseia na análise do contexto em que drogas, sexo e violência aparecem na obra audiovisual. Por exemplo, se há uma cena no filme ou da novela que envolve consumo de drogas, há que se perguntar: há glamourização do uso da droga ou premiação do traficante? Em que contexto da trama a cena ocorre? Há incentivo ou banalização das cenas de sexo? Nesse caso, a proposta atual do Ministério da Justiça demonstra avanço, pois considera que o espectador pode ser crítico.
Pesquisas recentes, conduzidas por universidades, mostram que mais importante que o produto audiovisual, é a mediação que envolve crianças e adolescentes. Uma criança que assiste solitária a um programa fica mais exposta do que uma que recebe as imagens e mensagens trazidas pela mídia e tem a oportunidade de dialogar com outras pessoas (pais, avós, irmão, professores). Uma criança pode desenvolver uma leitura crítica do audiovisual, se bem orientada. Nesse caso, a classificação indicativa faz sentido, pois os cidadãos aprendem a se posicionar.
A Classificação Indicativa – a quem cabe o controle?
O processo ainda está inacabado. Vale lembrar que a classificação indicativa vale para filmes, ficção televisiva e games, porém para programas de TV ao vivo, há somente um leve monitoramento. Para programas jornalísticos, exibidos no meio da tarde, não há qualquer controle, o que permite a exibição de jornais sensacionalistas, com apologia à violência e à justiça com as próprias mãos, com flagrante desrespeito aos direitos humanos. As questões morais das telenovelas noturnas preocupam mais do que os jornais sensacionalistas.
Nos Estados Unidos, a classificação indicativa de filmes é feita pela Motion Picture Association of America (MPAA), entidade sem fins lucrativos, integrada por representantes dos maiores estúdios de produção cinematográfica, com foco na defesa de seus interesses. A MPAA classifica de três maneiras: livre para todos os públicos, com sugestão do acompanhamento das crianças com menos de 13 anos por seus pais e, finalmente, restrito, quando o conteúdo é considerado adulto. Nesse caso, os menores de 17 anos só podem assistir ao filme no cinema se acompanhados dos pais. Para a classificação indicativa de séries e filmes exibidos na TV, o órgão responsável é o TV Parental Guidelines (TV-PG), que dá orientações aos pais quanto ao conteúdo dos programas.
Seria interessante um sistema assim no Brasil? Como seria delegarmos a classificação indicativa ao mercado cultural? No caso das emissoras de rádio e televisão, os exibidores obtêm concessões públicas, portanto, eles têm responsabilidade social sobre sua programação, devendo seguir a constituição do país e, teoricamente, contribuir para a educação da sociedade. A quem caberia, então, a escolha da programação e a decisão da classificação indicativa: à sociedade civil, ao Estado ou aos empresários do mercado cultural?
É comum, após um crime hediondo, programas clamarem por penas duras e justificarem a justiça com as próprias mãos. Será que os pais pensam sobre a carga ideológica desses programas? Será que os adultos e educadores têm o hábito de refletir sobre os valores que são transmitidos nos programas? Pensar se são os mesmos que querem transmitir a seus filhos? E, se são diferentes, como promover uma discussão de maneira que aquela experiência seja criativa?
Produtoras cinematográficas lutam para que a classificação indicativa seja a mais baixa possível, pois disso dependem seus lucros. Pesquisas revelam que a violência nos filmes e games vem aumentando, porque os critérios de classificação têm sido permissivos nesse quesito, o que não ocorre com as cenas sensuais dos filmes. É bom lembrar também que atualmente as crianças têm acesso a esses conteúdos pela internet, a qualquer momento. Nem sempre elas estão sob supervisão de um adulto.
Tudo isso nos faz pensar sobre a eficiência ou pertinência da classificação indicativa. O ideal é que a sociedade civil participe da construção dos critérios de classificação, de forma que a cultura local e seus valores sejam as balizas e que a cidadania possa ser exercida.
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