Quando se fala em cinema educativo ou rádio educativa, nos vem a ideia de algo bem feito, necessário, informativo, mas entediante, não prazeroso. Muitas vezes ligamos a TV para espairecer e o nosso desejo não é ver algo educativo, mas um programa gostoso, divertido. 
 
Por que será que, em nosso imaginário, os programas educativos têm essa conotação um pouco chata, como aquela tarefa escolar que estamos sempre a adiar?
 
Em primeiro lugar, nossa educação formal foi constituída pelos jesuítas que deixaram uma herança forte, cujas marcas são facilmente identificáveis até hoje. Disciplina militar, castigos, aprendizagem por meio da repetição oral do texto escrito ou decorado, práticas que têm sua origem no “Ratio Studiorum”, conjunto de regras pedagógicas da educação jesuítica, formulado no finalzinho do século XVI. Outro sentimento herdado é que a educação é sacrifício, é sofrimento. 
 
No final do século XIX, as ideias iluministas (enciclopedistas) e positivistas também influenciaram a formação de educadores no Brasil, valorizando o ensino de cunho prático e cientificista. Seguindo a cultura europeia, a cultura escolar aqui se construiria sempre apoiada no texto escrito e valorizando as especializações, origem da grade curricular que conhecemos até hoje.
 
Outra corrente que ganhou força no século XX foi a Pedagogia Nova, que se baseava em experiências europeias e americanas, sendo que o principal filósofo dessa vertente é o professor universitário norte-americano John Dewey (1859-1952) que defendia, entre outras coisas, que o interesse e a motivação eram condições básicas para que ocorresse o processo educativo.
 
Principalmente após o fim da primeira guerra mundial, com a crescente influência cultural dos Estados Unidos, o movimento da Escola Nova ganhou muitos adeptos no Brasil. Eles procuraram colocar a criança (e não mais o professor) no centro do processo educacional. 
 
A Pedagogia Nova ganha força nos anos 1920, principalmente na formulação de políticas estaduais de educação. O período entre os anos 1930 e 1937 foi uma das fases de maior efervescência política da nossa história. Com a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, iniciam-se mudanças significativas em todos os campos da sociedade brasileira e a formulação de uma nova política educacional para o país.  A publicação do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, em 1932, redigido por Fernando de Azevedo e assinado por 26 educadores brasileiros é um momento marcante na história da educação.
 
Embora o grupo seja classificado com o rótulo de “liberal”, os signatários do manifesto tinham posturas diferentes, principalmente divididas entre os elitistas, como Lourenço Filho e Fernando de Azevedo; e igualitaristas, como Anísio Teixeira, Paschoal Lemme e Roldão de Barros.  Havia também uma corrente minoritária: a Pedagogia Libertária, ligada aos movimentos sociais populares, em especial ao movimento operário anarquista, que perdeu força com a intensa repressão política.  
 
As posições dessas correntes permearam os debates político-pedagógicos no período da Primeira República que alimentaram as Conferências Brasileiras de Educação. A Pedagogia Nova conquistou espaço entre os chamados “profissionais da educação”, inclusive participando das formulações das políticas públicas na Segunda República (1930-1937). Mas a Pedagogia Tradicional, que estava enraizada na prática escolar, prevaleceu na maioria das escolas, especialmente as católicas (que eram muitas). Esse contexto comprova que não basta a aprovação de políticas educacionais mais avançadas, é preciso também buscar transformações no cotidiano, na cultura escolar de base.
 
Um educador muito avançado e importante na história da educação foi o baiano Anísio Teixeira (1900-1971), discípulo de John Dewey, que defendia uma escola renovada. Seu caminho acabou cruzando com o de outro importante educador, na verdade a do médico-antropólogo-educador, Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), que depois de consolidada carreira como antropólogo – era Diretor do Museu Nacional – apaixonou-se pelo rádio já nos anos 1920.  
 
Pensar na educação a distância em pleno anos 1920 já mostrava a visão pioneira de Roquette-Pinto em relação à aproximação dos campos da educação e da comunicação. Os dois educadores liberais acabam se encontrando quando Anísio Teixeira, em 1934, então secretário da Educação do Distrito Federal, aceitou colocar em prática o projeto de Roquette-Pinto: uma rede de radioescolas que havia sido aprovado em âmbito federal, mas não saíra do papel. 
 
Logo depois, os dois educadores defenderam outro projeto. Com a mesma perspectiva renovadora de educação, em 1935, Roquette-Pinto encaminhou ao Ministro da Educação – Gustavo Capanema – o projeto de criação de um Instituto de Cinematografia Educativa e, em 13 de janeiro de 1937, Getúlio Vargas oficializava a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince). 
 
No discurso de posse do grande cineasta Humberto Mauro para ser o chefe de serviços técnicos do Ince, Roquete-Pinto deixa claro que há confusão entre cinema educativo e cinema instrutivo, embora os dois andem sempre juntos. No entanto, ele argumenta que o verdadeiro cinema educativo é o cinema de espetáculo, o cinema da vida integral. Segundo Roquette-Pinto, “educação é, principalmente, ginástica do sentimento, aquisição de hábitos e costumes de moralidade, de higiene, de sociabilidade, de trabalho e até mesmo de vadiação…”.
 
O antropólogo tinha uma visão vanguardista para os anos 1930, ao falar do “prazer da fruição” e de “ginástica dos sentimentos”. Entendia que os filmes de ficção e de diversão exerciam maior influência cultural, do que os filmes ditos educativos, que não passavam de “mera instrução”.
 
Na verdade, as regras severas (ainda tão presentes no imaginário de toda a comunidade escolar) que levam ao medo do riso, do humor, da irreverência, da descontração, somada à herança do apoio exclusivo à cultura letrada, legitimaram um currículo distante da realidade do aluno, desprovido de emoção e de sedução para o aprender. A escola tradicional se apoia em uma hierarquia rígida na qual não cabe um filme de ficção, que possa emocionar ou divertir. 
 
A iniciativa do Ince, analisada pela pesquisadora e professora Marília Franco, pioneira nas pesquisas de cinema e educação, é considerada uma experiência de frustração e mau aproveitamento, justamente porque se manteve distante da perspectiva defendida por Roquette-Pinto. 
 
Para se ter uma ideia do grande e desperdiçado investimento governamental no Ince, Humberto Mauro, cineasta que dirigiu a instituição até 1975, é considerado um dos maiores realizadores brasileiros, tanto em quantidade de produções, como em qualidade. Segundo Marília Franco (2004, pg.11):
 
Em 1936 deu-se o grande e histórico encontro do cinema brasileiro com a educação. Humberto Mauro realizou, em seis meses, 28 filmes, totalizando 150 minutos sobre temas que iam de taxidermia a passos de dança. Antes disso já havia dirigido, para o Instituto do Cacau, da Bahia, o filme Descobrimento do Brasil, tendo como roteiro a Carta de Caminha.
Em 1975, quando completou 78 anos e comemorava 50 de dedicação ao cinema brasileiro, Mauro terminou seu filme educativo nº 228 – Carro de bois. Nessa extensa e preciosa filmografia, figuram clássicos do gênero como Velha a Fiar e a série Brasilianas. Além de obras interessantíssimas como Preparo e Conservação de Alimentos, filme de 11 minutos, classificado no catálogo do INCE como de documentação rural, mas cuja beleza e competência narrativa cativam o interesse de qualquer plateia.
 
A maioria desses filmes está preservada nos arquivos do Centro Técnico Audiovisual (Ctav), no Rio de Janeiro e alguns estão disponíveis em vídeo e DVD, na Coleção Brasilianas, lançada pela Funarte.
 
Por que é importante que conheçamos essa história? Primeiro para não pensarmos que cada projeto de cinema e educação está “inventando a roda”. Há tempos que já se sabe do potencial educativo do cinema. É muito importante conhecermos erros e acertos do passado, para que novos projetos não fracassem. Mas também para refletirmos sobre o preconceito criado com o termo “cinema educativo”.
 
Por mais que hoje muitas produções aliem de forma brilhante o caráter lúdico ao educativo, em nosso imaginário esse preconceito ainda é forte. Basta olhar para a audiência baixa que as emissoras educativas revelam (rádio e TV), mesmo trazendo programação bem cuidada e cativante. 
 
 
Para quem se interessa por saber mais sobre a história do Ince, sugiro a seguinte bibliografia:
 
FRANCO, Marília. Você sabe o que foi o I.N.C.E? in: A Cultura da Mídia na Escola – Ensaios sobre Cinema e Educação. São Paulo: Annablume, 2004.
MOGADOURO, Cláudia Educomunicação e escola: o cinema como mediação possível (desafios, práticas e proposta). Tese de doutorado. ECA-USP, 2011. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-23092011-174020/pt-br.php
MORETTIN, Eduardo V. Cinema Educativo: uma abordagem histórica, Revista Comunicação & Educação (4), set/dez/1995 – Moderna, CCA-ECA-USP: São Paulo, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/comueduc/issue/view/2967
 

 

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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