Cena do filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, com o ator Lázaro Ramos (Crédito: divulgação)

O ano de 2015, como já vem acontecendo nos últimos anos, contou com a estreia de muitos filmes brasileiros. O site da Agência Nacional do Cinema (Ancine) reporta o lançamento de 114 filmes nacionais. A variedade dessas produções é imensa, tanto em temáticas, como em gêneros e orçamentos. Porém a maioria dos títulos passou despercebida do público. Esta que vos fala, que tem particular interesse pelo cinema brasileiro, viu algumas dessas produções. 

Por que isso acontece? Como já escrevi diversas vezes, os filmes com pouca verba de marketing são distribuídos em poucas salas. O exibidor que ainda acredita no cinema brasileiro mantém o filme por um ou dois fins de semana em cartaz. Passado esse tempo, os filmes que não “emplacam” (a grande maioria), são retirados. Antigamente, quando havia mais salas de cinema, podia-se contar com o “boca a boca”, a divulgação dos espectadores que gostaram e recomendaram aos amigos. Porém, a concorrência com as grandes produções americanas é desleal. Quando o filme brasileiro cai nas graças de algum exibidor que não vê o cinema apenas como negócio (meia dúzia), ele permanece em exibição, mas em uma única sessão. 

Quem ouviu falar, por exemplo, no filme Muitos Homens Num Só? Dirigido pela cineasta Mini Kerti, estrelado por Vladimir Brichta, Alice Braga e Caio Blat. Ninguém? Pois eu achei um ótimo filme! Inspirado em Hitchcock, o mestre do suspense, a narrativa traz a história real de um falsário que viveu nos anos 1910, no Rio de Janeiro (RJ). 

Elenco bom, conhecido do grande público, exímia direção de arte, uma história intrigante e bem contada. Ninguém ficou sabendo do filme que, como todos, foi financiado com dinheiro público. Eu só consegui ver, porque foi exibido no Clube do Professor, num sábado pela manhã. Que sorte a minha!

Outro filme excelente que fez algum sucesso no Nordeste, mas aqui quase ninguém viu: A História da Eternidade, do estreante em longas Camilo Cavalcante, integrante da criativa turma de Pernambuco. No início, achei o título do filme muito pretensioso. Mas, não! De forma poética, a obra vai fundo nas dominações seculares, marcadas pela economia rural e pelo patriarcado. Poderia se passar no Nordeste, no interior de Santa Catarina ou, ainda, em algum país do leste europeu. Conta as histórias de três mulheres, de diferentes gerações, que enfrentam a seu modo a solidão. O filme pode ser visto na televisão, no Canal Brasil ou NET Now. Mas fique atento, caso retorne aos cinemas em alguma mostra, pois é filme para tela grande. A cena em que o personagem de Irandhir Santos interpreta a música “Fala”, de Secos & Molhados é antológica e, segundo o diretor, foi criada pelo próprio ator, esse pernambucano que já é marco do nosso ótimo cinema.

Irandhir tem uma trajetória com muitos trabalhos em teatro, TV (A Pedra do Reino) e cinema. Ele ficou mais conhecido do grande público em Tropa de Elite II (2011) como o professor Fraga. Ele brilhou também em A Febre do Rato (2012), O Som ao Redor (2013) e Tatuagem (2014), só pra citar alguns, contribuindo para a qualidade das obras. Em 2015, foi protagonista, além de A História da Eternidade, em outros três filmes que igualmente fizeram pouca bilheteria: Permanência, de Leonardo Lacca, Ausência, de Chico Teixeira e Obra, um filme paulistano, bastante autoral, do jovem cineasta Gregório Graziozi.

Quero falar mais sobre o filme: com fotografia deslumbrante em preto e branco, Obra mostra um arquiteto, herdeiro de uma construtora poderosa, que passa por cima de qualquer obstáculo que atrapalhe seus negócios. Durante o nivelamento do terreno de uma obra, são achados restos humanos no solo. Quem seriam aquelas pessoas? É simples ignorar e construir a obra por cima? O duelo de interpretações entre Irandhir e Júlio Andrade é de tirar o fôlego. Incômodo e excelente filme, demorou dois anos para estrear e foi visto por um público ínfimo.

Alguns acham que convocar elenco conhecido da televisão é garantia de sucesso para um filme. Não confere! Até mesmo o consagrado cineasta Jorge Furtado – diretor de filmes conhecidos como O Homem que Copiava – não se saiu bem nas bilheterias de 2015. Realizou um filme sensível e contemporâneo intitulado Real Beleza, com Vladimir Brichta, Adriana Esteves e Francisco Cuoco no elenco. A crítica não gostou, ou não entendeu o filme, que ficou duas semanas em cartaz, em São Paulo (SP). 

Quando a crítica não gosta, a chance do filme ter boa carreira é quase nula. Mas o contrário não é verdadeiro. O filme Orestes, de Rodrigo Siqueira, foi bastante elogiado pelos críticos, mas conseguiu estrear com apenas 13 cópias e o próprio diretor fez sozinho a distribuição, tentando popularizá-lo ao máximo. O filme fala de vários conceitos que a população tem sobre justiça e da consolidação da democracia. O formato é totalmente inusitado. O diretor foi buscar na Orastéia, trilogia de peças teatrais, de Ésquilo (485 a.C), a ideia de um julgamento popular. Mas o foco é o julgamento do ex-Cabo Anselmo, guerrilheiro que se revelou colaborador do regime militar. Um filme forte e necessário, que fica no limiar entre ficção e documentário.

Por falar em documentário, chamo a atenção sobre a qualidade e a variedade de nossos documentários. Nada parecido com os documentários do “Globo Repórter” ou do “Animal Planet”, com voz in off, como se fosse uma divindade a explicar o fenômeno “incontestável”. Nossos documentários, que tiveram como mestre maior Eduardo Coutinho, têm se destacado internacionalmente pela clareza com que explicitam opções e recortes, deixando claro que é um ponto de vista, entre muitos possíveis. Tivemos, em 2015, o excelente documentário O Sal da Terra, uma coprodução Brasil/França, assinada pelo cineasta alemão Wim Wenders e por Juliano Ribeiro Salgado, filho do fotógrafo Sebastião Salgado, cuja história é narrada no filme. Poderia ser um documentário “chapa branca”, mas eu não o encarei assim. Conta uma história de vida do fotógrafo: valorosa, positiva e também com fragilidades e desapontamentos. E uma linda saída de sustentabilidade, de reflorestamento das terras brasileiras, fato ainda desconhecido do público. 

Documentários podem ser poéticos, altamente polissêmicos e nada didáticos, como é o caso de dois lindos filmes que pude ver em 2015. Campo de Jogo, de Erick Rocha, mostra, sem narrações, a final de campeonato de futebol de uma favela do Rio de Janeiro (RJ). A paixão pelo futebol sem cartolagem, paixão genuína das classes populares e a solidariedade em torno do esporte são mostradas em imagens muito bem filmadas. Filme positivo, enigmático e inspirador. 

Outro documentário poético e ousado é Hysteria, dirigido por Evaldo Mocarzel e Ava Rocha. O filme documenta a turnê realizada em 18 cidades de Santa Catarina, da peça de mesmo nome, criação coletiva do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo (SP). A peça teve carreira surpreendente ao ocupar antigas casas, contando histórias de mulheres tiradas de suas famílias e confinadas em hospícios, por serem consideradas loucas. Evaldo Mocarzel, cineasta ligado à cena teatral paulistana, vem se dedicando ao documentário poético, como no filme Quebradeiras (2011), que mostra a vida de mulheres quebradeiras do coco babaçu. São experiências de filmes sensoriais, com forte presença da música e da imagem, sem muitas narrações ou legendas. Curiosamente, Hysteria e Campo de Jogo, dois documentários bem diferentes entre si, mas altamente poéticos, foram realizados por filhos do cineasta Glauber Rocha.

Outro modelo consagrado do documentário brasileiro é o musical. Miguel Faria Jr, o mesmo diretor de Vinícius (2005), estreou em 2015 o belíssimo documentário Chico: Artista Brasileiro.  Felizmente esse filme promete uma bela carreira e bom público, pois, além da qualidade, Chico Buarque é uma unanimidade nacional entre nossa geração de adultos. Alguns, mais jovens, podem até ter ouvido falar em Chico Buarque, mas o filme oferece uma oportunidade de conhecerem o artista completo que ele é: músico, escritor, intelectual, pensador do Brasil.

Por último, o baiano Sérgio Machado, estreou dois filmes importantes em 2015, porém com público restrito. Ambos são filmes fundamentais para educadores. O primeiro é um documentário Aqui Deste Lugar, que retrata famílias brasileiras beneficiadas pelo programa Bolsa Família. Com posicionamento político honesto e claro, o filme não é panfletário e nos permite uma reflexão sobre luta contra a fome no Brasil. 

Igualmente engajado politicamente é o filme de ficção Tudo que Aprendemos Juntos do mesmo diretor. Antes de estrear no Brasil, o filme teve ótima carreira internacional, circulando no exterior com o título O Professor de Violino. Escolhido para fechar o Festival de Cinema de Locarno, na Suíça, foi muitíssimo aplaudido. Mas os distribuidores brasileiros acharam que ter a palavra “professor” no título poderia afastar o público. É assim que a figura do professor é encarada pelos interesses mercadológicos!!! O longa, que custou R$ 10 milhões, orçamento alto para os moldes do cinema brasileiro, é baseado na peça Acorda Brasil, de Antônio Ermírio de Moraes, que tem por tema a experiência da Orquestra Sinfônica de Heliópolis. Lázaro Ramos interpreta o violinista Laerte que, por problemas financeiros, aceita o convite de ensinar música em uma escola pública daquela favela. Sem maniqueísmos, mas numa chave de profunda emoção, a obra mostra pontes possíveis entre o mundo do Hip Hop (com a presença de Criolo e Rappin’ Hood) e da música clássica, da Osesp e da periferia, dos negros e dos brancos e, especialmente, da arte como possibilidade para a juventude em contraponto ao tráfico de drogas e à violência.  Foi a rápida carreira deste filme nos cinemas que mais me doeu o coração. Teremos que esperar que o filme volte em DVD ou fique disponível para download.

Possivelmente o fato da crítica enxergar filmes humanistas como piegas contribuiu para a sua breve carreira. Um pouco do processo de realização deste filme pode ser visto no vídeo que traz depoimentos do ator Lázaro Ramos e de Sérgio Machado, diretor que vem de uma carreira que inclui a assistência de direção de Walter Salles e João Moreira Salles e a direção dos belos Cidade Baixa (2005) e Quincas Berro D’água (2010).

Por fim, acho importante citar algumas mulheres cineastas que se destacaram em 2015 no cenário brasileiro. Entre muitas, cito apenas duas: Anna Muylaert, com o filme feminino Que Horas Ela Volta? e Marina Person, com o sensível Califórnia. Vamos torcer para que nosso cinema seja mais conhecido e prestigiado pelo público em 2016. 

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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